Duplo estrangeirismo

No final do ano de 2015, na confraternização do NEPFE fizemos um amigo secreto em que o presente deveria ser necessariamente livros. Ao retornar do recesso criamos o desafio ao grupo que cada um escrevesse um texto sobre algo lido durante as férias, ou de alguma experiência vivida nesse período que tivesse sentido ao que temos produzido. 
Desafio aceito! Publicaremos os textos.

Hoje o texto é de Emanoela Lima

“Ser-no-mundo é as múltiplas maneiras que o homem vive e pode viver” (Heidegger)

Tenho ultimamente me debruçado sobre a estranha sensação de esvaziar minha natividade. Diante do que me é dado, passo, silenciosamente, a questionar os fatos de ser substancialmente o conhecido. Mas será mesmo que o conhecido é aquilo que se apresenta?
Regada a uma bibliografia enigmática, irreverente e, para mim, dotada de significado/sentido, minhas férias tiveram o doce prazer de descobrir partes da história de um dos maiores nomes da literatura brasileira, Clarice Lispector. O livro, uma obra belíssima escrita por B. Moser; escritor também estrangeiro. Talvez essa junção de estrangeirismo, para além do significado da palavra, proporcione um encontrar-me.
       Logo com as primeiras frases do livro pude perceber o quanto ser estrangeira é louvável e, ao mesmo tempo, obscuro. Estrangeiro é uma palavra que costumo usar quando ando em solo desconhecido, não por ser desconhecido em si, mas por me arrancar as amarras das verdades prontas e acabadas; e desvelar o que se mostra no cotidiano mais blasé.
Com a licença, utilizarei um trecho da obra Perto do coração selvagem, que diz:
        "Não haverá um só espaço dentro de mim para eu saber que existe o tempo, os homens, as dimensões, não haverá nenhum espaço dentro de mim para notar sequer que estarei criando instante por instante, não instante por instante: sempre fundido, porque então viverei maior do que na infância, serei brutal e malfeita como uma pedra, serei leve e vaga como o que se sente e não se entende" (Clarice Lispector).
Diante do exposto deixo algumas interrogações: somos nós, o simples vazio de passar pela
vida sem deixar-se viver? Ou somos a brutal e malfeita pedra que coexiste com toda a Natureza? Somos apenas o passado corroendo o futuro?!
Para compor meu duplo estrangeirismo, o retorno às aulas me presenteia com os pensamentos de Heidegger. Avisada de que não seria fácil a compreensão à primeira vista, me permiti pisar mais uma vez em solo desconhecido. Neste, fui ainda mais provocada a lançar mão dos significados construídos ao longo desse existir e/ou atribuídos pela metafísica tradicional. Ler Heidegger é deixar que a abstração presentifique sem que haja um processo lógico. O solo desconhecido, aos poucos, foi se tornando mais maleável e a compreensão um tanto quanto clarificada. O que me permite dizer que estar no mundo é uma característica existencial do viver.
Estes dois referenciais inferem questões à minha existência sobre aquilo que emerge, se manifesta, se desvela (caso você já tenha tido a oportunidade de ter contato com as obras de um dos dois, creio que compreenderá o que aqui exponho).  Numa breve leitura, os dois propõem um lançar-se sempre em busca de algo. Não uma busca frenética e sem sentido, porém dentro das possibilidades que se apresentam ao ser-aí. Ao estrangeiro, quase sempre, é dado o ‘não’. Entretanto, o ‘não’ é indispensável ao viver humano, segundo Heidegger, pois, o ‘não’ se configura como um impulso para a concretização de algo.  
De Clarice a Heidegger, ou de Heidegger a Clarice, tenho andado sobre a tênue relação Ser-com/Nada. Compreendendo que o homem não é uma síntese de corpo e alma, mas a própria existência.


“Atrás de movimentos seguros tentava com perigo e delicadeza tocar no mesmo leve e esquivo, buscar o núcleo feito de um só instante, enquanto qualidade não posa em coisas, enquanto o que é sim não se desequilibra em amanhã – e há um sentimento para frente e outro que decai, o triunfo tênue e a derrota, talvez apenas respiração. A vida se fazendo e a evolução do ser sem o destino – a progressão da manhã não se dirigindo à noite mas atingindo-a” (O lustre, Clarice Lispector)

Comentários