Conforme prometido, segue o texto produzido pelo professor Marcelo Ribeiro, especialmente para o ciclo de Debates sobre Pesquisa e Fenomenologia. O NEPFEE agradece ao professor por compartilhar um texto tão sensível e que trouxe muito sentido ao nossos encontros de debate!
por Marcelo Silva de Souza Ribeiro.
Não estou certo se irei abordar com pertinência a questão da análise fenomenológica, tal
como é a proposta deste Ciclo de Debates, organizado pela professora Erika Höfling
Epiphanio. Talvez minha proposta seja lançar reflexões sobre como tenho desenvolvido meus
trabalhos ao tempo que me vejo compelido a fazer algumas confissões acerca da minha própria constituição, ou pelo menos como tenho me
apropriado até então.
Uma vez anunciado e advertido a respeito dessas limitações, buscarei
algumas reduções, bem naquele sentido fenomenológico, para me implicar e explicar como
venho pensando e atuado via a forte influência da fenomenologia.
A
história
das ciências parece ser marcada por uma noção chave,
divisora de águas, e essa noção diz respeito a ideia de experiência. Sem adentrar nos labirintos e discussões dessa história, encontramos
sentidos diferentes sobre a ideia de experiência para o empirismo, para a metafísica e para a fenomenologia (só para ficar aqui com as três principais matrizes filosóficas): Experiência como algo físico, objetivo (empirismo-objetivista), experiência enquanto sombras que encobrem a
realidade (metafísica) e experiência como vivência de consciência (fenomenologia).
Essas apreensões acerca da ideia de experiência tem também provocado alguns questionamentos, principalmente quando se aproxima
daquela elaborada pela fenomenologia, por exemplo: A experiência como vivência de consciência pode desvelar realidades? Pode provocar denúncias e mudanças? Mesmo sendo uma arguta
crítica
da visão empirista, a
fenomenologia demanda seus próprios rigores metodológicos, mas quais? Como articular vivência e reflexão?
Essas e outras perguntas perambularam e ainda perambulam minha existência e contagia minha forma de ser e atuar no mundo. Vamos encarar algumas
delas?!
Não posso dizer que sou um fenomenólogo ou um psicólogo, um professor
ou um pesquisador que trabalha especificamente com a fenomenologia. Seria mais
assertivo afirmar que me aproximo daquilo que Michel Serre chamou de
mestiçagem. Sou um mestiço, um híbrido.... As influências são diversas, assim como os interesses e não consigo, ou melhor, não quero abrir mão de uma ou de outra, embora, algumas
vezes seja inevitável a escolha ou tenha que pagar um bom preço para “mestiçar” as influências.
Lembro quando, ainda na graduação, descobri a Gestalt-Terapia e o pensamento
rebelde e revolucionário de Fritz Perls. Uma das coisa que me encantou
foi reconhecer que não precisava escolher ou ser uma coisa OU outra, mas que
poderia escolher ou ser uma coisa E outra, dependendo, obviamente, dos diálogos, das
composições, dos arranjos e dos ajustes.
Sobre essa primeira “redução”, chego a um ponto importante desta nossa reflexão
sobre a análise fenomenológica, que é questão da traição.
Segundo o professor Roberto Sidnei Macedo, do grupo de pesquisa FORMACCE, da
UFBA, a traição é um entendimento que
precisa ser restabelecido na tradição científica porque é um caminho possível e que viabiliza a criação, a inventividade e
integração de ideias, além de servir como antídotos às ortodoxias e aos “castelos
disciplinares”.
Em termos mais concretos, a traição possibilita o desacoplamento de uma técnica ou método
vinculado a uma teoria e a
sua consequente integração a outra perspectiva. É o que fazemos, por exemplo,
nos trabalhos que desenvolvemos no CEPPSI acompanhando os pais, onde “pegamos” os
modelos de relações parentais
de Lidia Weber (que trabalha no viés mais comportamental) e o colamos numa
perspectiva fenomenológica.
Fazemos isso também com a Teoria das Representações Sociais (TRS),
onde enfatizamos mais os aspectos da experiência nessa teoria / método e potencializamos ou realçamos a dimensão e influência fenomenológica – bom lembrar que a TRS, desenvolvida por Moscovici,
sofre uma amálgama de influências (sociologia, psicanálise, construtivismo, marxismo,
fenomenologia... outra mestiçagem?!).
Um outro exemplo, agora mais complexo, diz respeito a posição híbrida onde me sinto
mais confortável como profissional e que vem orientando meus trabalhos, pelo menos em
termos epistemológicos. Desde o começo dos meus processos formativos profissionais, na
graduação em específico, que me identifico com a visão marxiana e a visão fenomenológica de mundo-humano. Em um primeiro
momento, visões
antagônicas,
ou no mínimo diferentes em vários aspectos. Essas duas visões também causavam em mim incômodos e outros constrangimentos, sobretudo
quando eu era questionado por pessoas identificadas como marxistas ou por
outras que se identificavam como fenomenólogas. Eu termina por me sentir apartado
de uma visão e de outra, excluído de um grupo e de outro. Era um nômade
condenado a viver no exílio desses limites territoriais do saber.
Na errância desse exílio fui descobrindo outras vozes, outros
olhares, outros sentidos e aos poucos fui me inventando na mestiçagem daquilo
que chamo hoje de “fenomenologia crítica”. Aliás, essa nomeação não é de toda original, pois já a vemos em Sartre, Schütz, Walter Benjamin, Paul Goodman na
Gestalt-terapia e mais recentemente Gadamer, Morin... embora alguns desses não
sejam necessariamente compreendidos como fenomenólogos propriamente ditos.
Sem adentrar na longa e complexa discussão das bases
que culminam na fenomenologia
crítica, a grande
questão é como articular a dialética e fenomenologia
como formas de compreensão e apreensão do humano e mundo. Certamente esse
encontro possível (?) não se daria no âmbito dos limites dessas duas tradições, mas sim
nas suas reinvenções via um diálogo onde afirmação e negação (enquanto movimentos típicos de uma tradição e de outra, da fenomenologia
e da dialética) possam ocorrer. Em termos concretos isso pode explicar, por exemplo,
no nível
da investigação, o interesse em buscar as contextualizações históricas, as contingências, a necessidade de superar as ideologias opressoras, mas ao mesmo
tempo o assumir as vivências e experiências, afirmando-as, por fim, articulando vivência da experiência com a reflexão. Lembrando que os trabalhos de Donald Schön (sobre formação profissional) e Paulo
Freire vão nessa direção, autores assumidamente de influência
fenomenológicos. Em Paulo Freire, inclusive, é comum encontrarmos a expressão “dialógico-dialético”, indicando aí as duas influências aqui discutidas.
Indo para uma segunda redução, a da vivencia da experiência enquanto produtora de sentido e significado, quero chamar atenção para
a ideia de vivido enquanto sentido, e significado enquanto simbolizado. É certo
que esse sentido e esse significado não precisam ser necessariamente
conscientes, ou melhor, termos consciência de seus processos
ou que se deem de uma forma elaborada, na verdade há variadas formas desses processos, mas
parecem que sempre andam em pares (ver o trabalho de Antonio Damasio, “O mistério da Consciência” - um verdadeiro tratado de
"neurocognição fenomenológica). Seguindo a revelação dessa redução do
sentido e significado, do vivido e simbolizado, ou para brincar com o jogo
nietzschiano, entre Apolo e Dionísio, ou entre figura e funda, na linguagem da
Gestalt, é possível sinalizar uma pertinência da fenomenologia com interacionismo simbólico (abordagem das ciências humanas / sociais que tem uma pegada marxiana).
Em comum, tais visões impõe novas compreensões
sobre o fazer ciência e a própria noção de ciência. “O que é ciência, afinal?”
(livro de Alan Francis Chalmers, já leram?). A primeira delas é o
questionamento acerca da realidade. O que é realidade? O que é o real? A segunda e implicada com a
primeira tem a ver com a noção de sujeito e sua relação com o mundo, portanto,
que conhece, que interpreta, que simboliza, que representa, que experiencia o
mundo. Sujeito e mundo, consciência e mundo (para lembrar aqui a tradição
fenomenológica) são inseparáveis em sua constituição e compreensibilidade, pelo
menos isso tem sido assim abordado nessas visões (marxiana e fenomenologia).
Uma terceira implicação tem a ver com a noção de
neutralidade, portanto. Haveria neutralidade de um sujeito que possibilitasse a
apreensão pura da realidade? E o que diríamos sobre a linguagem? A linguagem
possibilita a compreensão e a própria organização da ciência é eivada da
cultura, da história... o interlocutor mesmo está sempre assumindo uma
perspectiva, que é linguística, histórica e assim por diante....
Ao questionar, portanto, essa não objetividade
(purista, ao menos) da realidade e, consequentemente, do conhecimento,
cairíamos num relativismo? Seria então o reino da relatividade uma vez que a
realidade como abstração pura, ou como realidade objetiva apartada do sujeito
algo inviável? Isso deixarei para as discussões.
Queria, por fim, dizer que a análise fenomenológica
e toda a gama de tradições que se associam no seu veio exigem outros rigores.
Por exemplo: faz sentido ainda falarmos de “dados”? E o que dizer da coleta de
dados como algo que está lá e que o pesquisador sai em um determinando tempo e
espaço, pega os dados, põe na "cestinha" e volta para casa feliz por
fazer sua contabilidade? Faz sentido
ainda falarmos de instrumentos de coleta? Isso não seria voltar as coisas já
denunciadas e criticadas por Gadamer em “Verdade e Método”?
Mas parece que a despeito das boas experiências, das nossas confissões e das argutas reflexões, os meus caminhos
fenomenológicos andam pedregosos.... quem nunca teve que labutar com o comitê de ética por causa de entendimentos epistémicos? Quem nunca
aqui viveu descasos no seu processo de construção de conhecimento / fazer ciência? Eu mesmo já vivi algumas dessas histórias.
Apesar dessas pedras no caminhos serem herdadas de uma tradições iluminista é preciso que reconheçamos nossas próprias limitações e
que possamos nos apropriar criativamente das “tradições” que nos habita e nos constitui. Não é por menos que dizemos em nossos trabalhos
que a natureza das nossas pesquisas são meramente descritivas... ou nas
considerações finais quando anunciamos, como autocrítica, quase que pedindo
desculpas, que fizemos um trabalho qualitativo e que por isso a amostra foi
pequena e, portanto, impossível de generalizar (aliás, o que é mesmo amostra?!).
Este texto não teve a pretensão de explorar as sustentações daquilo que
chamamos fenomenologia crítica, e provavelmente deixou mais pontas soltas do
que eu gostaria, porém o intento foi mesmo apontar para os diálogos, sem
egocentrismos, e a importância do fazer nossos caminhos!
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