O Cupido



O texto de hoje foi escrito por uma aluna do 2º período do curso de Psicologia da UNIVASF, em uma atividade avaliativa da disciplina Psicologia Fenomenológica-existencial I. Com grande sensibilidade Dani construiu um conto que evidencia a constituição do self pelo olhar da psicologia humanista e o papel da escuta terapêutica no processo de transformação da autoestima. Boa leitura!


 Danielle Nascimento.

Era a primeira vez do inexperiente Cupido na terra. Finalmente podia contemplar os humanos em suas singularidades, vendo-se cercado por pessoas brancas, negras, altas, baixas, gordas, magras e entre tantas outras características distintas que eram incríveis e únicas. Eles eram fascinantes, andando de um lado para o outro, como se sempre estivessem com pressa para chegar em algum lugar. O ingênuo Cupido vagou sem rumo pela grande cidade na qual se encontrava, numa forma translúcida que não permitia que ninguém o visse. Acabou, pelo acaso, entrando em um hospital. E nesse hospital, viu pela primeira vez um ser humano nascer.
O Cupido amou aquele Bebê no instante que o viu. Era uma vida totalmente nova, repleta de oportunidades, com um futuro inteiro pela frente que despertava seu interesse. O que aquele bebê se tornaria? Ele iria ser um adulto andando de um lado para o outro com pressa ou… Algo diferente? O Cupido nunca havia se sentido tão animado e intrigado com alguma coisa, então decidiu acompanhar esse Bebê. Estaria ao seu lado, vendo seu crescimento e como sua vida - tão cheia de possibilidades - se tornaria.
Contudo, a mãe e o pai do Bebê não pareciam perceber a criança incrível que eles tinham. As brigas em casa o citando eram constantes, falavam palavras cruéis e o deixavam chorando sem oferecer algum amparo. O Cupido não entendia a razão disso acontecer, o motivo deles falarem palavras tão feias e pesadas para uma Criança com brilho nos olhos e sorriso inocente, que mal entendia o que lhe era dito, que era tão perfeita em sua forma de ser: Tinha um coração que batia forte, o sangue fluía por suas veias, os pulmões inflavam e desinflavam sempre que ele respirava, e os cílios impediam qualquer poeira de entrar em seus olhos. Era perfeito, simples assim.
E conforme a Criança crescia, seu brilho nos olhos diminuía, cada vez que compreendia melhor o que seus pais lhe diziam. Parecia não perceber que, apesar das palavras de seus pais, ele era perfeito e nada mudaria isso. O Cupido queria poder dizer para ele, abraçá-lo e dar o conforto que lhe foi negado... Contudo, ele era um cupido insípido e diáfano, podendo apenas observar os humanos enquanto aguardava receber sua aljava e flechas e exercer a função para a qual existia.
A Criança então passou a frequentar a escola, sempre cabisbaixo e seguido pelo Cupido. Esse, esperava poder ver sua Criança querida fazendo amizades, ou descobrindo as capacidades incríveis que tinha dentro de si, ou simplesmente percebendo que devia andar de lá pra cá com pressa como os outros. Mas na escola, não era tão diferente de casa. A criança passou a ouvir coisas ruins vindo de outras crianças, que lhe apontavam o dedo e riam, chamando-o de coisas que não era seu nome e o Cupido não compreendia a razão. O que tinha de errado com as outras pessoas? Será que a criança tinha algo que ele não via? Tentou por diversas vezes enxergar no Menino a razão de ser tão rechaçado pelos outros, mas continuava enxergando apenas uma criança de coração puro e diversas perspectivas.
O Menino cresceu e se tornou um pré-adolescente. De cabisbaixo, passou a andar quase curvado, como se quisesse esconder-se do mundo e não precisar encarar mais ninguém. Passava o menor tempo possível fora de casa, sentava longe dos outros na escola e lanchava escondido no banheiro. Estava sempre com expressão assustada e parecia ter absorvido para si todas as coisas ruins que diziam dele, se achando feio, “burro” e outras coisas terríveis. Falavam que ele não teria futuro sendo como era e o Cupido continuava indignado e sem compreender. Como aquele Jovem poderia não ter um futuro, se o próprio ato de viver um segundo a mais, já era, de certa forma, um futuro?
O Cupido via então, muitas vezes, ele chorar. Um choro silencioso e que ninguém além dele ouvia. Um choro que trazia em cada lágrima, dor contida no fundo de sua alma, uma dor que ninguém parecia ver ou querer ajudá-lo a sarar. O Cupido queria, mas como podia? O jovem então passou a machucar o próprio corpo, como se isso fosse aliviar a dor que ele trazia dentro de si. O Cupido sentia a dor e chorava, por vê-lo machucar alguém que ele tanto gostava, se auto-machucar. Desejava que seu corpo pudesse ser corpóreo, para abraçar o Garoto e dizer que ele era perfeito e que todas aquelas pessoas estavam erradas.
Então o tempo passou. O agora Adolescente, quando em casa, se escondia da própria família - que continuava o tratando de forma tão ruim quanto na infância. Para fugir daquele terrível ambiente e da realidade, utilizava também o computador e ficava mais tempo nisso do que em qualquer outra coisa, começando a se cortar menos conforme o computador parecia preencher mais e mais um espaço dentro de si. O Cupido se sentia satisfeito em ver que ao menos ele não parecia sofrer quando usava aquela máquina estranha, que os machucados iam sarando e um sorriso vez ou outra aparecia em seu rosto.
Certo dia, o Cupido olhou melhor para aquela tela e viu um nome que não era do Adolescente, assim como uma foto que não era a sua imagem. Percebeu naquele momento que o Jovem se passava por outra pessoa, contando histórias que não eram suas (ou será que eram?), vivendo uma vida que não existia (ou agora existe?). E por mais que inicialmente o computador parecesse um resgate para a vida de tristezas daquele Humano, ele passou a ficar triste cada vez que se distanciava da máquina. Não olhava mais para o próprio reflexo e ignorava suas questões no ‘mundo real’. Parecia conseguir ser feliz apenas quando estava na pele daquele outro-eu, se entristecendo sempre que parecia perceber que sua vida não era a que ele dizia ter, sua aparência não era a que ele queria ter. E quanto mais a sua imagem ideal se afastava de sua realidade, mais infeliz ele ficava. O Cupido percebia que ele viver aquela outra-vida não o fazia tão bem quanto imaginava. Poderia protegê-lo disso? Como fazê-lo amar a vida que tinha e que poderia ter, a pessoa que era e que poderia ser?
Após um tempo, o Cupido finalmente ganhou sua aljava, ao adquirir experiência suficiente no mundo humano. Contudo, suas flechas ainda eram delgadas e singelas, incapazes de despertar grandes emoções ou sentimentos. Ao mesmo tempo, o Adolescente se tornou um Adulto, que não andava somente curvado, como também parecia ter um fardo enorme nas costas que empurrava seu corpo para baixo. Passava pelas pessoas e parecia quase tão incorpóreo quanto o Cupido, ignorando quem estava ao seu redor e sendo ignorado - que era melhor do que quando era apontado. 
Decidido a fazer alguma coisa, o Cupido deixou o adulto para trás pela primeira vez em todos aqueles anos, obstinado a vagar pelo Mundo em busca de algo ou alguém que pudesse mostrar ao humano como ele era incrível. Procurou pelos hospitais, pelas igrejas, pelas escolas e pelos shoppings. Foi de norte ao sul, de leste à oeste. Por vales e colinas. Mas foi de volta para a cidade que ele encontrou alguém que parecia poder ajudar seu humano. Era uma pessoa simples, que também andava de um lado para o outro com pressa. Diferente de outros, contudo, essa outra pessoa parecia escutar e compreender os humanos que recorriam à ela com seus fardos e bagunças. E incrivelmente, esse sujeito detentor de tão boa escuta, também possuía uma enorme bagagem nas costas, que deixava de lado na hora de ouvir quem lhe procurava.
Sabendo que seu Adulto precisava de alguém para escutá-lo, o Cupido não pensou duas vezes: Pegou uma de suas flechas e acertou naquela nova pessoa, fazendo o mesmo com seu Adulto para que elas se encontrassem. E assim foi feito, após uma ligação por telefone e marcação de ‘consulta’. O Adulto passou a encontrar aquele que o escutava e essas visitas se tornaram mais frequentes do que o Cupido podia imaginar. Apesar de parecer inseguro inicialmente, o Adulto se abria cada vez mais daquela redoma de proteção que fizera envolta de si, conversando e desabafando com o outro quando percebia que estava sendo escutado, que aquele ali não se referia de forma negativa para ele. O grito silencioso preso na garganta do Adulto, começava então a ser ouvido. Pela primeira vez na vida, podia chorar para alguém, contar o que sentia e como foi difícil conviver com uma tal ‘síndrome’ que deixara sua aparência tão diferente dos demais. O Cupido não entendia  muito o que isso queria dizer, pois para ele, o Adulto se distinguia dos outros por cada um ter sua singularidade, sua ‘coisa-única’.
Conforme as frequentes visitas, cercadas por conversas e desabafos, a carga invisível que o humano carregava nas costas, parecia diminuir, ou quem sabe apenas ficava mais fácil de ser carregada. A outra-vida nas redes sociais era deixada de lado e, quem diria, ele acabava por fazer um perfil usando seu próprio nome e sua própria imagem. O Cupido não podia estar mais feliz de ver que seu Humano não precisava mais fingir ser outra pessoa, e naquele mesmo dia, ele finalmente ganhou sua aljava e flechas especiais. Agora podia fazer o que sempre quis, desde que viu aquela pessoa perder o brilho nos olhos: Acertá-lo com a flecha do Amor-Próprio, fazê-lo ver como era incrível e se amar daquela forma.
Contudo, quando tentou acertá-lo, eis a surpresa: A flecha simplesmente se desfez no ar, antes de acertar ao Adulto. Isso só podia significar que, após tantos anos, o Adulto havia aprendido a se amar. E ele andava de cabeça erguida, com as mãos nos bolsos, e ao contrário dos outros, sem pressa alguma. Agora sabia que era perfeito, afinal, seus cílios impediam a poeira de entrar em seus olhos.

Comentários

  1. Minha filha, meu coração fora do peito. Super orgulhosa de você, Danielle Lopes Nascimento!

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