Por Fernando Martins
O 7º Com-Versas, transmitido na sexta-feira (26/09), contou com a participação da psicóloga Gabriela Neuber, da professora da Univasf Karla Daniele e da médica Patrícia Venturoli. Essas três mulheres, atravessadas profissionalmente e pessoalmente pela existência atípica, protagonizaram, junto à nossa coordenadora Erika Epiphanio, uma conversa potente sobre esse tema tão importante e sensível, a partir da qual pudemos lançar olhares mais cuidadosos para as existências atípicas que, em suas singularidades, têm muito a nos ensinar sobre si mesmas
Na perspectiva
fenomenológica, e mais especificamente no campo da Gestalt-terapia, o
Transtorno do Espectro Autista (TEA) é compreendido como um modo singular de
ser-no-mundo e de se ajustar às demandas sociais (FADDA, 2013; SILVA &
SILVA, 2018). Segundo Marques et al. (2019),
esse modo é caracterizado por um enrijecimento na fronteira de contato, o que
dificulta uma comunicação com o outro, mas não implica na ausência de contato,
apenas em uma forma particular de estabelecê-lo. A abordagem gestáltica busca,
então, acolher a singularidade autista, olhando para o seu ajustamento e suas
potencialidades e respeitando os limites que fazem fronteira a essas
existências. A esse debate, o olhar fenomenológico tem muito a contribuir, e a
conversa que tivemos no último encontro foi um potencializador para pensarmos
sobre isso.
O ENCONTRO
Logo no início,
mencionei os atravessamentos pessoais que nossas convidadas possuem com o
autismo. Para me fazer explicar, contextualizando os leitores, localizo a
maneira com que cada uma delas convive com o autismo no seu dia a dia.
Karla Daniele, já
tinha uma vinculação ao tema do autismo devido ao seu trabalho com inclusão -
inclusive com a publicação do livro “Inclusão começa em mim”, no entanto, posteriormente recebe o diagnóstico de um de seus filhos, o que foi, segundo ela,
uma virada, a partir da qual passou a ter diante de si um fenômeno sobre o qual
passou 24 anos teorizando. Karla conta que trava uma luta pelo direito de seu
filho ser quem ele é, aprendendo no seu tempo e se processando ao seu modo. Ela
relata que, no início, não sabia bem o que faria a partir do diagnóstico, mas
sabia o que não faria e não queria para o filho: uma perspectiva normatizadora
da vida.
Patrícia, que
possui dois filhos atípicos em casa, conta que durante o período de gestação se
esforçou em estar preparada para ser mãe…típica. O que a pega de surpresa é a
vinda de seus dois filhos gêmeos com o TEA. A partir disso, Patrícia conta:
“[...] a gente não tem manual de uma
maternidade atípica, ela é construída [...] à medida em que as coisas vão se apresentando.” Ela ainda fala
sobre a desconstrução da maternidade típica e de como foi aprendendo com seus
filhos, “porque cada um é único na sua
expressão de sensibilidade sensorial, cada um é único na sua capacidade motora,
cada um é único na sua capacidade de contato visual […]”. Essa fala
evidencia a existência dos autismoS, no plural, e a inexistência, portanto, de
UM autismo, ou UM modo de ser autista; são “centenas de configurações da
expressão, forma e intensidade das manifestações para cada caso” (FADDA, 2013,
p.17). Essas existências, como disse Erika em sua mediação, não são
padronizáveis.
Cada existência autista se expressa de forma única - não há um autismo, mas autismoS.
Gabriela conta
que o TEA atravessa sua vida desde seu nascimento, pois é uma pessoa autista
que recebeu o diagnóstico tardiamente; depois, inclusive, de trabalhar com
avaliação e acompanhamento de crianças autistas durante 9 anos. Em sua primeira
fala, Gabriela diz ser “chocante de ver o quanto que a psicologia é
normativa, o quanto ela foca nos rótulos e na busca por normatizar as pessoas
[...]”. E ressalta como sua trajetória na psicologia a permite desconstruir
algumas de suas percepções, aprendendo com seus pacientes e “se aprendendo” na
relação com eles. Em uma de suas falas, Gabriela comenta sobre a importância de
entender o fenômeno a partir do lugar de fala, algo que ela chama de
“empoderamento autista”, ou seja, dar ao autista a possibilidade de conhecer,
nomear e falar sobre seus fenômenos para o outro. Esse movimento, que está na
base da fenomenologia, permite acessar a vivência autista a partir daquele que
o vivencia, compreendendo os sentidos por trás de seus comportamentos.
Esse com-versas
nos convidou a olhar mais atentamente para as existências atípicas,
reconhecendo a singularidade e o modo com que cada uma delas pode ser-no-mundo.
As experiências de Gabriela, Karla e Patrícia nos mostram que o encontro com o
autismo, como mãe, profissional ou pessoa autista, é também um processo de
deslocamento interno, de desconstrução e abertura. É nesse espaço, em que a
vida se apresenta em suas múltiplas configurações, que reside a potência de
poder aprender com o outro, permitir ser atravessado por sua diferença e,
sobretudo, reconhecer seu modo de ser.
Aprender com o outro é reconhecer a potência de cada modo de ser.
O 7º Com-Versas
foi um dos eventos mais potentes do projeto. Para (re)assistir, acesse o nosso
canal no youtube, onde estão todos os demais programas do projeto. http://www.youtube.com/@NEPFEEUnivasf
Para aqueles que
se interessam pelo autismo, abaixo disponibilizamos alguns links de trabalhos
voltados para a fenomenologia e sua articulação com o tema, além das
referências usadas nesta matéria.
CARDOSO, Juliana Antonio. A
Gestalt-terapia no tratamento do transtorno do espectro autista – TEA. Uma
intervenção possível. IGT rede, Rio de Janeiro , v. 19, n. 36, p. 62-75, 2022 .
Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1807-25262022000100062&lng=pt&nrm=iso.
Acesso em 01 out.
2025.
FADDA, Gisella Mouta; CURY, Vera Engler. A experiência de mães e pais no relacionamento com o filho diagnosticado com autismo. Psicologia: teoria e pesquisa, v. 35, 2019. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ptp/a/ZmKTNVYCbJYknWFmMcrpwpQ/?format=pdf&lang=pt. Acesso em: 03 ou 2025.
FADDA, Gisella Mouta. Autismos e o olhar centrado na pessoa.
Monografia (Especialização em Psicologia Humanista, Existencial e
Fenomenológica). Belo Horizonte: Universidade da Fundação Mineira de Educação e
Cultura - FUMEC, 2013. Disponível em: https://encontroacp.com.br/wp-content/uploads/2016/12/gisella.pdf.
Acesso em 01 out 2025.
SILVA, Gilmara de Araújo; SILVA,
Stéfane Machado. A GESTALTPEDAGOGIA COMO UMA ESTRATÉGIA DE INCLUSÃO PARA AS
CRIANÇAS AUTISTAS EM ESCOLAS REGULARES. Revista
do NUFEN, Belém, v. 10, n. 1, p. 217-234, 2018. Disponível em: https://periodicos.ufpa.br/index.php/nufen/article/view/4873.
Acesso em: 01 out 2025.
MARQUES, Maria Andréia da
Nóbrega; CARDOSO, Fernanda Pessoas; GOMES, Sandra Almeida Costa; MARQUES, Bruna
Bezerra. A Criança com Transtorno do Espectro Autista na Perspectiva da
Gestalt-terapia: uma revisão integrativa. IGT
na Rede, v. 16, n. 31, p. 158-172, 2019.
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