Periodização do treinamento psicológico


Por Thais Petroni Rocha Lima Silva
Mestranda em Psicologia pela FFCLRP/USP
Psicóloga da Equipe de Ciclismo de Ribeirão Preto


      Sabemos que uma boa preparação física, aliada a grande oferta de tecnologias atuais, possibilita à atletas uma condição espetacular de atuar nas diferentes modalidades que se propõe, todavia, a preparação psicológica tem se apresentado como um grande diferencial na performance de um atleta campeão.



      Muito se escuta sobre Periodização no Treinamento Esportivo (no aspecto Físico e Psicológico), e uma das melhores definições sobre o tema vem de Bompa (1999), citado por Marques e Markunas (2019), que diz que o principal objetivo do treinamento esportivo é fazer com que o atleta ou equipe alcance a máxima performance possível num momento determinado, o período competitivo. Para ele, a boa forma atlética e o alto nível de desempenho ocorrerão quando o treinamento esportivo é realizado em alto nível e o padrão psicológico é favorável, o que por sua vez depende da adequada periodização.
      Mas, o que constitui a periodização na preparação psicológica? Como ela é realizada? Quais suas particularidades?
      Para conversarmos sobre isso, convidamos duas psicólogas do esporte, Marisa Markunas e Thabata Telles, que contaram um pouco sobre suas experiências com o tema. 


QUEM SÃO ELAS:

Marisa Markunas

“Sou Marisa Markunas, formada em psicologia (PUC-SP;1998) e estudante de psicologia do esporte há quase 25 anos, ou seja, sigo aprendendo no enfrentamento das situações da prática e nas leituras constantes. Formalmente fiz especialização em Psicodrama (convênio PUC-COGEAE/SP e SOPSP;2002 – cujo trabalho de conclusão está num artigo na Revista Abrapesp/2007) e Mestrado em Educação Física (EEFE/USP; 2005). Boa parte de minha "formação" em psicologia do esporte tem um pouco de auto didática (embora eu tenha ido a Cuba em 1999 para um curso introdutório – cujo conteúdo está no texto de 2003, sobre periodização), pois sou da época em que as fontes de conhecimento estavam disponíveis apenas nas bibliotecas físicas, a internet praticamente não existia nessa época. Do ponto de vista da psicologia tenho muito orgulho da minha formação básica na PUC/SP que me preparou para dialogar com diversas formas de compreensão dos fenômenos humanos, mas tenho uma visão de homem e de mundo alinhadas com o behaviorismo radical. Desde 1998 eu atuo diretamente em contexto de formação de atletas (Bradesco Esportes e Educação – www.bradescoesportes.com.br) e mais recentemente  com boxe olímpico (https://instagram.com/cbboxe?igshid=1irn7sbskjrfw). Infelizmente em minha trajetória dediquei pouquíssimo tempo a escrever diretamente conhecimentos ou experiências em registros que podem ser divulgados [até me esforço para escrever direitinho, mas minha habilidade é falar mesmo,rs]. Ou seja, nada de mídias sociais e poucos materiais escritos, mas indico os capítulos que são produto de reflexões cuidadosas como os textos que estão na Coleção da Casa do Psicólogo (editados em 2000 e 2003) assim como o material que organizei em 2012 (no livro de destreinamento e carreira, da mesma editora) baseado em experiências de atletas lesionados que encerraram sua carreira. Mais recentemente tive a satisfação de expressar algumas ideias sobre a organização do trabalho da psicologia do esporte junto ao treinamento esportivo, que é foco dessa conversa.”

Thabata Castelo Branco Telles    
    
“Sou psicóloga (CRP 06/148224), especialista em psicologia do esporte pelo CFP, com graduação (PIBIC/CNPq) e mestrado (FUNCAP), ambos em Psicologia e pela UNIFOR, onde ainda fui Professora de 2012 a 2014. Também atuei como docente na UFTM, entre 2014 e 2015. Em seguida, fiz doutorado em Psicologia na FFCLRP/USP (FAPESP), com estágio de pesquisa nos Arquivos Husserl de Paris - ENS/CNRS (FAPESP-BEPE), de 2016 a 2018. Atualmente, sou pesquisadora pós-doc da EEFERP-USP e do I3SP (Instituto de Ciências do Esporte e da Saúde de Paris), e atual presidente da ABRAPESP (2020-2022). Minha pesquisa mais recente envolve o mapeamento de diferentes Artes Marciais e Esportes de Combate (AM&EC) pelo mundo, incluindo o desenvolvimento de metodologias específicas para pesquisa e intervenção nesta área, contando com a interface entre psicologia do esporte e fenomenologia. Com isso, recentemente criei a fightin, uma consultoria de psicologia do esporte especializada em AM&EC.

                      

E, afinal, o que é Periodização de Treinamento Psicológico?

A Periodização do Treinamento Esportivo, segundo Marisa Markunas, é uma expressão bastante conhecida para os profissionais de educação física que atuam com atletas em contexto competitivo, desde a formação até o alto rendimento.  É um modo de trabalho a fim de buscar o balanço entre desgaste (exigências) e a recuperação. Ela corresponde à divisão, em períodos, do tempo total do ciclo de treinamento esportivo, nos quais serão distribuídos os conteúdos e suas cargas de trabalho (quantidade e intensidade), buscando que os melhores efeitos ocorram na data/época prevista. Thabata então coloca que gosta de pensar a periodização como uma organização e planejamento do treinamento ao longo do tempo e dos objetivos que se tem para a realização do trabalho. É como se, ao iniciarmos uma atuação em psicologia do esporte, seguíssemos com o fluxo de (1) diagnóstico, a partir do que se apreendeu em determinada situação; (2) planejamento e (3) treinamento. Vejo esses três momentos como bastante interligados e dinâmicos, podendo ser mexidos a qualquer momento.
Para Marisa, o treinador esportivo precisa organizar o trabalho físico, técnico e estratégico (tático) de modo a garantir que o atleta não esteja desgastado "antes da hora", quer dizer, precisa ter uma preparação para apresentar as melhores condições no momento ideal. Do ponto de vista da psicologia pensa-se algo semelhante. Se as atividades de treinamento começarem em janeiro, quando começar a promover o desenvolvimento de estratégias para suportar stress? Como fazer isso? Se considerarmos os conteúdos psicológicos que podem ser treinados, como por exemplo habilidades de visualização, técnicas de respiração e controle psicofisiológico entre outros, a distribuição de cada conteúdo deve ser relacionada com todas as outras atividades esportivas que o atleta pratica (e para isso acontecer na prática é que temos que buscar a periodização integrada). Ela cita como exemplo, no início das atividades anuais, após uma pequena pausa de férias, é natural que o cansaço físico seja muito intenso e é coerente que as atividades de treinamento psicológico considerem aplicação de técnicas de relaxamento, pois isso cria uma relação de complementariedade em relação às necessidades de descanso e recuperação para o atleta – se a parte física é mais exigente, busca-se oferecer estratégias para fortalecer esse trabalho para que o treinamento esportivo como um todo faça sentido ao atleta. Isso quer dizer que a periodização é distribuir em certos períodos ou fases, os diversos tipos de conteúdo de treinamento e cada uma dessas etapas tem objetivos específicos.

Thabata então chama a atenção que como a periodização trata-se de um processo de planejamento, pode e deve ser reajustada cada vez que houver mudança nas metas, no período que se tem, nas características de treino, etc. Gosto de lembrar que pouco adianta se falar apenas em fortalecer o mental, o psicológico... é como se pedíssemos a um profissional de educação física para ele melhorar um corpo, o físico... Ele perguntaria: mas com qual objetivo? Que valências serão trabalhadas? Com a psicologia, não é muito diferente. Nesse sentido, a periodização ajuda muito a entendermos quais processos psicológicos serão mais bem trabalhados em determinado momento e de que forma. Podemos, por exemplo, trabalhar em regulação de ansiedade a curto prazo, através de marcadores psicofisiológicos; desenvolver a percepção visual com treinos cognitivos a médio prazo; já a longo prazo, implementar novas habilidades motoras. Ou seja, periodizar envolve definir tempo, estruturar objetivos, e precisar processos e ações futuras. Além disso, requer que constantemente esses elementos sejam revisitados, podendo ser mantidos ou modificados em detrimento das demandas de cada situação.
            E para fechar Marisa pontuou, em nossa conversa, que a periodização do treinamento psicológico é apenas uma parte do trabalho. Ela nos conta que além dessa “distribuição específica do trabalho”, é fundamental entender que a preparação psicológica envolve o acompanhamento e análise das necessidades individuais dos atletas, coleta constante de feedback, orientações e apoio psicológico, para que isso seja alinhado e então um plano geral possa de fato ser adequado às demandas reais de cada atleta e da equipe como um todo,  no respeito às individualidades e na direção dos objetivos da equipe esportiva (como saber qual é a competição-alvo a cada macro da periodização).


E, então perguntamos as duas psicólogas que colaboraram com esta matéria como elas trabalham na prática como a Periodização do treinamento psicológico.


Marisa Markunas nos conta que em seu dia a dia, o trabalho acontece por contatos individuais com atletas e observação sistemática de rotinas de treinamento para coletas de dados e a aplicação de exercícios específicos. É preciso ter um planejamento organizado com a comissão técnica, conhecer a modalidade, conhecer o calendário, estar familiarizado com os atletas, comunicação bem alinhada, pois só assim será possível adequar às rotinas. Parece simples, porém, tirar um plano do papel é mais difícil do que parece, pois sempre existem fatores que dificultam a execução do plano ideal, como por exemplo, datas de competições intermediárias serem alteradas, circunstancias de viagens internacionais trazerem novas demandas (uma vez uma nevasca impediu que a equipe retornasse ao Brasil e isso modificou 1 semana de trabalho), além de várias outras questões que podem modificar a rotina e o trabalho de preparação psicológica. Contudo, preparar é buscar tornar apto ao enfrentamento de dificuldades e colocamos isso em prática com adaptações do previsto para que seja realizado de acordo com as condições. Dessa maneira, a atuação do psicólogo, em uma equipe esportiva, pode e deve acontecer de diferentes formatos. Atendimentos individuais, atividades coletivas como reuniões, dinâmicas, workshop para orientações.

Thabata Telles então diz que durante meus primeiros anos de prática profissional, costumava acompanhar atletas em consultório por um prazo mais prolongado. Infelizmente, não tinha o conhecimento que tenho hoje para conseguir fazer uma boa periodização. Naquela época, acabava periodizando conforme as demandas de cada semana, apesar de sempre atentar às metas de curto, médio e longo prazo e aos ciclos das competições. Também definia quais processos seriam trabalhados, mas acabava fazendo isso apenas a cada semana. Algo que hoje faria diferente e que falo para não fazerem o mesmo. Atualmente, devido ao envolvimento maior com pesquisa, diminuí o tempo destinado aos acompanhamentos mais prolongados. Contudo, através da fightin, além de consultoria, criei um protocolo de sessão única para praticantes de modalidades individuais. Nele, uma boa periodização é fundamental, pois não terei acesso constante ao atleta/praticante. Para isso, conto com a compreensão de sua história de vida da modalidade, seus objetivos, como se dá a rotina e os treinamentos, bem como suas características psicológicas mais proeminentes. Com isso, consigo oferecer um serviço básico e mais acessível, mas sem fórmulas mágicas e nem achismos. Tem sido um desafio, mas acredito muito na nossa capacidade criativa para explorarmos diferentes formas de atuação, principalmente no ambiente esportivo".

Perguntamos para nossas convidadas como é possível pensar em periodização nesse tempo de quarentena?

Marisa diz que: a quarentena praticamente impede pensar em periodização, pois não há calendário definido. Tudo foi iniciado com a indicação de 15 dias de afastamento social (aqui em SP as primeiras informações deram essas diretrizes nos contextos esportivos que atuo), então isso não demandaria grandes dificuldades de um "retorno". Porém, as informações e instruções de órgãos de saúde e instancias do governo do estado vieram em poucos dias e logo ficou claro que estávamos diante de uma situação sem especificação de prazos. Ou seja, se a periodização é organizar o fluxo e o movimento, tentar entender a relação de estressores com ferramentas, habilidades e competências psicológicas para lidar com esses estressores, a quarentena trouxe um grande e novo desafio. Uma circunstância muito diferente do conhecido. Então se necessita sair da ideia de periodização enquanto algo que foi planejado para gerar um efeito em determinada data. A periodização do treinamento psicológico foi quebrada pela quarentena, entretanto, apenas a periodização foi quebrada, porque como eu entendo a preparação psicológica como algo mais amplo, mais aberto, ela não para, mas passa-se a viver uma adaptação e acolhimento diante das situações vivenciadas, como por exemplo, o movimento de acolhimento de frustrações, gestão de stress e orientações diante da interrupção abrupta das atividades.
Já Thabata acredita que neste momento a periodização se faz mais importante ainda, pois sem ela, não teríamos nem com saber o que precisaria ser readaptado. Penso que é um período de privilegiarmos mais metas de curto prazo, já que não sabemos muito o que acontecerá nos próximos meses. É preciso fracionar mais do que estamos acostumados a fazer, pois a experiência de confinamento nos irradia: ela está no tempo, no espaço e no corpo. Neste momento, não podemos percorrer longas distâncias, assumir compromissos a longo prazo e nem realizar atividades de alta intensidade. A meu ver, uma boa periodização exige sensibilidade com a situação que se apresenta. Assim, se conseguirmos mergulhar nesta experiência tal como ela merece (sem ser vista como algo ruim ou bom, mas real), entenderemos que precisamos afinar a partir do pouco. Aqui, a meta de curto prazo pode ser diária ou mesmo o próximo turno do dia, em um modo de existir pequeno com o qual não estávamos acostumados a pensar. Penso que é hora de olhar para as miudezas e detalhes.



Para finalizar nossa conversa, perguntamos a elas como foi à adaptação do trabalho nesse período de quarentena e Marisa começou nos contando que uma das primeiras ações que fez, foi não fazer nada! Ela disse as pessoas foram impactadas (inclusive eu!) e eu me coloquei a disposição, mas afastada, esperando o movimento do outro. Todos precisávamos de tempo para absorver, para se adaptar, até para se perder nesse movimento. E aí, a Psicologia como espaço de nomear, desabafar, enxergar, adaptar -se, é muito útil aqui. Então, a partir da segunda semana de afastamento, eu fui, sistematicamente, fazendo contatos individuais com a equipe para entrar em uma complementação, para saber como estavam. Esse acolhimento e abertura para receber os impactos, vem trazendo um novo momento e entendimento ao longo do processo. Dentro do possível, estimando, de alguma maneira, prazos mais curtos, como essa semana, próxima quinzena e perceber necessidades e possibilidades. Foram sendo identificadas demandas como dificuldade de sono, algumas situações de tédio, dificuldade de concentração, baixa motivação, e com isso a necessidade de fazer avaliações psicológicas para um novo processo de preparação psicológica e treinamento psicológico. É um momento em que as necessidades vão sendo identificadas, o ritmo de um desenvolvimento vai sendo potencializado e a preparação psicológica tem sua continuidade. Tem acontecido também boas descobertas e valorização de oportunidades como o reconhecimento do contato familiar, a percepção de rotinas muito particulares, o respeito e aceitação de estados emocionais, por exemplo. E inicia-se um momento em que os atletas utilizam ferramentas e/ou habilidades psicológicas que já dominavam (e pareciam que eram especificas para o contexto esportivo) nas atuais situações que eles têm experimentado e que começam a ganhar um outro significado, outro sentido. Outros lugares e potencias na prática dos atletas. Agora, estamos na sétima semana de quarentena e as equipes profissionais já estão se organizando com uma expectativa de retorno, então o trabalho passa a ser de "previsão então, estamos fazendo encontros virtuais com grupos de atletas para retorno de orientações coletivas e recuperar o "senso de pertencimento", que foi naturalmente diminuído. Nas semanas seguintes, o plano de retorno já implicará em recuperar aprendizagens e experiências acumuladas sobre seus pontos fortes e experiências favoráveis (antes e durante a quarentena) e a troca de experiências. Um ponto interessante, trazido por Marisa é que, nesse período de quarentena, houve espaço para reuniões (virtuais) com as equipes profissionais, possibilitando conversas sobre a preparação psicológica, que muitas vezes não acontecem na rotina do dia a dia.
            Thabata contou que buscou ser rápida em pensar de que maneira poderia trabalhar nesse período. Uma ajuda diferencial nisso, foi o fato de ter amigas na Itália e na  China, que lhe passaram um “panorama do que teríamos como realidade próxima”.  Então, disse ela, minha primeira medida foi me colocar à disposição de forma online, e a cada semana repenso mais um pouco sobre estas novas formas de atuação. As idas a campo para pesquisa foram interrompidas, as academias fechadas e tem sido importante saber escutar bem as demandas dos atletas. Alguns que não competem em modalidades olímpicas têm falado inclusive em diminuir o ritmo e as expectativas, sem a pressão de não poder parar. Este componente estressor tem afetado especialmente aqueles que ainda tem previsão de competir, como nas modalidades olímpicas. Independentemente do grupo no qual o atleta se encontre, um dos desafios mais gerais tem sido em torno da promoção de saúde mental, como por exemplo, manejando o destreinamento ou evitando abandono da modalidade (drop out).
            Terminamos nossa matéria, com uma frase da Marisa, para nos servir como um afago nesse período difícil que vivemos. Ela nos diz: nossa expectativa é que independente do que puder ser previsto ou gerenciado, sairemos mais adaptados e espero que resilientes. Que isso de fato possa nos acontecer!


Referência bibliográfica:
Marques, M. P., & Markunas, M. (2019). Treinamento de competências psicológicas: planejamento e periodização. In Conde, E. et al. Psicologia do Esporte e do Exercício: Modelos Teóricos Pesquisa e Intervenção (pp. 137-160). São Paulo: Passavento.

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