GÊNERO: A CONSTRUÇÃO DE DIFERENTES TIPOS SOCIAIS.

Hoje temos o grande prazer em apresentar um belíssimo texto escrito pela Profª DRA. ADRIANA BERNARDES PEREIRA especialmente para nosso blog. Embora nosso debate sobre o corpo na sociedade atual tenha ocorrido a cerca de um mês, esta experiência ainda reverbera em nossas mentes e corações e isto mobilizou-nos a convidar a profa Adriana a colaborar com  este texto, já que a mesma é grande estudiosa de questões relacionadas a gênero. 

Por Adriana Bernardes Pereira*

No livro A construção social da realidade, Berger e Luckmann (1966) especificam que a realidade não é nem um a priori kantiano, nem um produto da maturação psicológica ocorrida depois da interação (a posteriori). Ela resulta de processos e atividades construídos pelas mediações psicossociais presentes na relação inter-constitutiva entre indivíduo e sociedade. Nessa relação, sentidos, percepções e experiências são confiadas às diversas realidades presentes no complexo mundo de matrizes que habitamos.
Percebe-se que existem alguns elementos que caracterizam a construção social de categorias de pessoas e coisas, bem como configuram o imaginário e a realidade dos sujeitos. Esses sujeitos, atores do sistema social, ocupam posições diferentes e fazem parte, todos eles, de uma matriz social que configura o que se chama de tipo social e é configurada por ele (HACKING, 2001; HALL, 2001 e PEREIRA, 2015).
O porquê da construção de um tipo é um questionamento que se apresenta como parte de pensar o conhecimento. A partir da perspectiva construcionista, nomear objetos, formar conceitos, circular ideias são formas de construir o mundo. Esse mundo que vai se formando é composto por grande quantidade de categorias, ideias e conceitos que descrevem o que no presente trabalho define-se como tipo social. A construção desses tipos e as nuances do seu processo podem nos permitir compreender as relações sociais enquanto estrutura rizomática e almejar a entendimento e transformação, caso ela se faça necessária, em oposição a entendê-la de forma linear e essencialista, ratificando o sistema (DELEUZE e GUATTARI, 1995).
         A utilização de categorias, conceitos e ideias, que, segundo a psicologia, são processos ou estruturas cognitivas organizadoras e facilitadoras do entendimento do mundo, pode influenciar o pensamento da coletividade de várias maneiras. Assim é que especificam e agrupam os elementos que formam a cultura e, em decorrência de seu uso excessivo, são considerados parte da condição humana, estabelecendo aquilo que inicialmente chamamos de tecido da cultura, reconhecido como uma segunda pele. A categoria homossexual, por exemplo, foi criada socialmente e passou a estabelecer um conceito carregado de valores que determina uma série de considerações acerca de pessoas com uma determinada forma de ser, estar e se relacionar no mundo. Antes dela, obviamente que essas pessoas existiam, porém, depois de sua determinação, a cultura se rearranjou e se reatualizou de outra forma.
         Este grupo minoritário, fora da heteronormatividade, caracterizado por inúmeras possibilidades de ser e desejar, é referenciado na atualidade como LGBTQ, e corresponde respectivamente: às lésbicas (L), que se caracterizam por pessoas com órgãos genitais femininos (vagina) que têm preferências afetivas e sexuais entendidas como desejo por outras pessoas com o mesmo órgão genital – conceitualmente definidas como mulheres; gays (G), que se caracterizam por pessoas com órgãos genitais masculinos (pênis) que têm preferências afetivas e sexuais entendidas como desejo por outras pessoas com o mesmo órgão genital – conceitualmente definidos como homens; bissexuais (B), que não se enquadram no sistema monossexista, podendo se conectar afetiva e sexualmente independente de órgão genital que possui e que deseja; e transgêneros e transexuais (T), que se caracterizam por pessoas que não se identificam com o gênero que a sociedade designou ao nascer ou que se identificam com mais de um gênero ou nenhum. É importante ressaltar que no caso das lésbicas, gays e bissexuais falamos de uma orientação sexual e no caso dos transgêneros e transexuais, que transcendem a questão do sexo e da sexualidade, falamos de identidade de gênero. Acrescido a essa “sopa de letrinhas” chegam aqueles que não podem ou não querem se enquadrar nas categorias acima descritas. São aqueles que por meio de sua performatividade causam estranhamento com seus corpos e ações quando diante das normas já estabelecidas sócio-culturalmente. Eles são denominados Queer (Q).
         Para melhor compreender as diferenças de possibilidades de  sentir-se e/ou de desejar o outro se faz necessário falar e situar historicamente a categoria Gênero. Seu surgimento é demarcado a partir do feminismo da década de 1980 em diante. Feminismo este que pode ser caracterizado como um conjunto de movimentos sociais e  filosóficos que reconhecem as diferenças entre os sexos e que diante delas luta pela justiça que exprima não necessariamente igualdade, mas acima de tudo equidade. (LOURO, 1999; SCOTT, 1986, 2005).
         O feminismo percorre um caminho histórico, descrito por ondas que geraram diferentes focos de lutas e perspectivas conceituais com ganhos de direitos civis que marcaram significativamente a sociedade contemporânea. A primeira onda, anos de 1930 a 1960, foi caracterizada pelas lutas feministas a fim de garantir o fim de discriminações contra as mulheres, o direitos a educação, aos direitos civis e aos direitos políticos por meio do voto; essa onda é marcada pelo que ficou conhecido como “Movimento Sufragista”.
         A segunda onda, dos anos de 1960 a 1980 foi caracterizada pela luta contra a opressão masculina e o patriarcado. Surgem nesta época movimentos opostos dentro do feminismo, um pela igualdade e outro pela diferença, ambos mostrando o paradoxo que só pode ser desenvolvido pelo diálogo e pela negociação. É instaurada a noção de equidade e seguem as lutas por espaços nos diferentes postos de trabalho e pela autonomia da mulher.
         Com a terceira onda, desloca-se o foco das mulheres e dos homens para os estudos das relações de gênero, por meio do chamado sistema sexo/gênero, categoria relacional que permitiu avanços significativos nos estudos feministas (SCOTT, 1986). e se deu sob a influência dos pós-estruturalistas que passam a ressaltar a questão das experiências singulares, das diferenças e da subjetividade, sendo esta construída no campo discursivo, pela alteridade e em movimento dialógico de percepção e subjetivação a partir do “outro”.
         Em seguida veio a desconstrução do sistema sexo/gênero enquanto binarismo biológico/cultural e a entrada das mulheres na academia para falar em prol das mulheres com empoderamento científico, advindo de estudos e pesquisas que as legitimam até hoje. Haraway (1991) crítica à dicotomia entre sexo e gênero, afirmando que tanto um quanto o outro devem ser historicizados e culturalmente definidos para uma compreensão legítima.
         Na atualidade do século XXI, se é que se pode pensar uma quarta onda, o feminismo “libertou” o gênero, que se apresenta como uma categoria relacional e política que ocorre dentro do campo discursivo, por meio de seus atos performáticos e na busca por ali encontrar espaços de direitos e de poder (BUTLER, 2003). Gênero, sexo e a sexualidade seriam construções sociais, realizados a partir de práticas regulatórias que produzem os corpos conformados ou rebeldes, ou seja, para além das definições presentes na matriz formada pela identidade de gênero/sexualidade (LGBTQ) volta-se aos elementos políticos que os unem em sua humanidade e não os que os diferenciam.  Elementos esses que podem ser encontrados nas condições de possibilidades que geram precariedade e vulnerabilidade dos direitos desses corpos, suas bases estruturais de poder e as diferenças de classe, raça etc. mantidas e significadas pelos discursos hegemônicos. A condição social de precariedade sistêmica da estrutura social que se tem hoje, advinda do discurso heteronormativo, somado ao ápice do individualismo e da publicidade, está direta e proporcionalmente ligada a vulnerabilidade da população LGBTQ. Esses excessos, produzidos principalmente pela cultura de massa, geraram alienação em todos os tipos de processos (produção, educação, subjetivação) e, por conseguinte, aumentaram a vulnerabilidade dos sujeitos.
        
REFERÊNCIAS
BERGER, P. L.; LUCKMANN, T. A construção social da realidade. Lisboa: Dinalivro, 1966.

BUTLER, J. Problemas de Gênero. Feminismo e subversão da identidade, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2003.

DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Tradução Aurélio Guerra e Célia Pinto da Costa. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1995. v. 1.

HACKING, I. La construcción social de que? Barcelona: Paidos Ibérica, 2001.

HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: D,P&A, 2001.

LOURO. L. G. Gênero e Sexualidade: Pedagogias Contemporâneas. Pro.Posições.Vol.19. Belo Horizonte, 2008.

PEREIRA, A. B. A construção social do tipo “jogador de futebol” sob o olhar da Psicologia Social do Esporte. Appris, 2015


SCOTT, J. W. O enigma da igualdade. Estudos Feministas, 13(1), 11-30, 2005.



* Adriana Bernardes Pereira é graduada em Psicologia  pela Universidade de Brasília UnB, Mestre em Educação Especial pela Universidade Federal de São Carlos e Doutora em Psicologia Social pela PUC/SP.  É professora Adjunta do curso de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de Goiás e do programa da mestrado em ciências ambientais e da saúde na mesma universidade. É uma pesquisadora extremamente versátil que desenvolve pesquisas e práticas nas áreas de Psicologia do Esporte, Gênero e mídias, Psicologia social,  entre outros.  É autora do livro A construção do tipo "jogador de futebol" sob o olhar da psicologia social do esporte. É membro do GT de Psicologia do esporte da ANPEPP, é membro da Associação Brasileira de Psicologia do Esporte (Abrapesp) e ainda atua efetivamente no GT de Psicologia do Esporte pelo Conselho Federal de Psicologia. 

E para complementar a discussão a professora Adriana ainda nos disponibilizou uma aula montada por ela em prezi, muito ilustrativa.

https://prezi.com/hl1gc57xoar1/genero/?auth_key=f4b001e2a7a68a756927fb25a1d11004cf2aa7a9



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