O corpo em suas dimensões: notas de uma sensação sócio antropológica


Caros leitores, hoje temos o privilégio de compartilhar com vocês o lindo texto produzido pelo querido João Borges para o nosso debate sobre O corpo na sociedade atual.


Por João José de Santana Borges*

Começo indicando o lugar de onde falo. Falo a partir do meu corpo. Estou/sou/possuo um corpo. E ele hoje completa quarenta anos de vida. Estranha sensação de comemorar cada ano de vida distante do nascimento e cada ano mais próximo da morte. Mas a morte do corpo, sua lenta e irreversível degradação, nada significa para um aporte cultural que há muito se remediou da finitude,  inventando uma dualidade que nos remedia da morte do corpo (Ver Hans Jonas, 2001): a alma, o espirito, a mente, a obra que perdura para além dessa existência física (Arendt, 2013) e inscreve o ser que possui o corpo e que é possuído por um corpo na história dos feitos humanos. Estranha desenvoltura essa nossa de proclamar a independência da morte. Querendo ou não, celebramos a passagem dos anos de existência do nosso corpo único, singular, que chamamos de nós mesmos. Nossa linguagem ordinária não consegue apreender a condição ambígua e ambivalente: sou/estou/habito um corpo. E também nos alienamos, nos distanciamos e o desprezamos. Só nos percebemos do corpo, por assim dizer, quando ele nos causa surpresa.
Escrevo também, a partir de um outro lugar (do mesmo): sou professor de yoga. Desde os 18 anos, ou antes, venho me embrenhando no oceano de experiências do universo yogi. Descortina uma multidão de possíveis no burilar dos estados do corpo, nos estados de consciência que proporcionam a sabedoria dos chackras. A memória que acessamos ao praticar os ásanas e que nos conecta com nossa história de vida, em um trabalho por vezes difícil, de auto-conhecimento através do corpo, suas amarras, suas potencialidades.
Um terceiro lugar também me abriga: uma certa região da sociologia. Aqui são muitas referências. Limito-me a algumas delas, menos empolgantes talvez:  Pierre Bourdieu revela, em suas meditações pascalinas, que aprendemos através do corpo, e somos corpos situados. Estamos posicionados no mundo, e essa importante lição nos desarma de uma espiritualidade desencarnada, nos reconcilia como nosso dharma no mundo. Lição tão importante em nós. Sofremos através dos nossos corpos e através deles também nos alegramos. Não podemos nos olvidar dessa condição de consciência encarnada no mundo. Uma experiência que se contrapõe a pelo menos três séculos de dicotomia corpo/mente, de fundação do pensamento científico, racional, uma aventura advinda do preceito cartesiano/kantiano, dos aprioris kantianos, por exemplo que inventa um espírito absolutamente livre das contingências da carne e que se converte em sujeito de pesquisa, essa abstração compatível com o objeto, também isento de afecções. Uma experiência própria do capitalismo secular, da vitória do desencantamento do mundo e da razão instrumental, a reger de modo hegemônico nossas vidas desde a modernidade. Com isso, um corpo-objeto, um corpo-máquina, um corpo desabitado e produto físico-químico-biológico isento de alma se faz preponderar em nossas representações sociais.
Mas se examinamos sociologicamente a questão do corpo, também devemos invocar uma antropologia que nos permita perceber que há uma diversidade irreprimível de modos de viver o corpo, e essa diversidade clama contra o desperdício da experiência (Boaventura de Sousa Santosl. É a experiência dos chamados saberes subalternos, ou mais claramente, saberes insurgentes, originados das tradições espirituais do planeta. Dentre elas, o xamanismo e o yoga. Do Xamanismo indígena, por exemplo, seguindo a pista de Eduardo Viveiros de Castro, vamos apreciar o descortinar o perspectivismo ameríndio. Essa é filosofia ancestral e tão virgem , redescoberta        por uma antropologia disposta a escutar a sabedoria do outro:  Como se pudéssemos compreender que cada ser tem uma perspectiva de mundo, e isso não se reduz aos humanos. Entidades da natureza, espíritos que povoam o imaginário indígena, têm suas próprias compreensões de si e do outro. Levar em conta as perpectivas de outros seres,  escutar o clamor de outro ser, nos sugere uma ética viva, uma ética encarnada na experiência de compreensão mútua entre as diversas agências, não apenas os humanos. E Mesmo entre esses, uma antropologia do corpo nos desperta para uma compreensão radical, que nos coloca diante do outro, em sua alteridade e permite-nos ao menos, compreender uma perspectiva diversa da nossa.
Levar em conta as perspectivas diversas que estão envolvidas em uma questão, talvez seja uma importante ação política. Ouçamos com nossos corpos e nossos corações. Se Habermas propõe uma razão comunicativa, podemos propor uma comunicação radical através da sensibilidade, e tal só é possível, via corpo. Uma linguagem profunda, mesmo brotada no silêncio, podemos vivenciar ao partilharmos nossa co-presença uns com os outros.



REFERÊNCIAS

ARENDT, Hannah. A condição Humana.  Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2013
BOURDIEU, Pierre. Meditações Pascalinas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.
BRETON, David Le. Antropologia do corpo e modernidade. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013.
HABERMAS, Jurgen. Entre naturalismo e religião: estudos filosóficos. Rio de Janeiro: Tempo brasileiro, 2007.  
JONAS, Hans. O princípio Vida. Fundamentos para uma biologia filosófica. Rio de Janeiro: Vozes, 2004.
SANTOS, Boaventura de Souza. A crítica da razão indolente: Contra o desperdício da experiência. São Paulo: Editora Cortez, 2007.



* João José de Santana Borges
Professor de Yoga e Professor Assistente do Curso de Comunicação Social com habilitação em Jornalismo e Multimeios
Departamento de Ciências Humanas - DCH - III
Universidade do Estado da Bahia - UNEB
Juazeiro - BA
Coordenador do Grupo de Pesquisa Corpoética: Estudos Interdisciplinares sobre Corpo, Comunicação e Saúde

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