Texto e imagens Sonha Maria Coelho de Aquino
Desde
que tenho iniciado as práticas de duas disciplinas do 8ª semestre, e que
compartilho com amigos e familiares o espaço em que estou inserida para
realização dessas práticas, a Comunidade de Pescadores e Pescadoras da Ilha do
Fogo, que muitos estranham tal inserção. Já chegaram a me questionar se mudei
de curso, ou o que poderia está fazendo lá com as pescadoras e pescadores, se
estou cuidando da “cabeça” deles. Tal desconhecimento da inserção da psicologia
e suas formas de atuação em comunidades populares ou com povos e comunidades
tradicionais se dá pelo próprio processo histórico da psicologia.
Tendo
como marco inicial os experimentos em laboratório de Wundt em 1879 na Alemanha,
a psicologia nasce e cresce na e para a elite. E ao longo dos seus primeiros
tempos de estruturação, desenvolve seu escopo teórico e suas práticas dentro
dos consultórios, organizações e ambiente escolar. No Brasil, em 27 de agosto
de 1962, quando ocorre a regulamentação da psicologia como profissão e criação
dos seus cursos universitários, é esse modelo tradicional de psicologia se
reproduz no ensino e prática profissional (Freitas, 2007).
Na
década de 60, no Brasil, ocorre também o golpe militar de 64 e o país vive
tempos de cerceamento dos direitos e de forte repressão e violência. De acordo
com Freitas (2007), o contexto político e social da América Latina e do Brasil,
de extrema pobreza, miséria, exclusão social, marginalização, repressão
política e cultural ao tempo de reascensão dos movimentos sociais pressiona a
psicologia a repensar suas práticas e a envolver-se nas questões políticas e
sociais do país, como se dava com outras áreas das ciências sociais e humanas.
Freitas (2007) ainda traz que é nesse contexto que a psicologia começa a sair
dos espaços clássicos e se inserir na realidade das comunidades com a
finalidade de torná-la mais comprometida com as classes menos privilegiadas. É
assim, que surge a terminologia psicologia na
comunidade.
A
partir de 1985, da psicologia na comunidade
surge à psicologia da comunidade. A
atuação do psicólogo que naquela era confundida com o “o educador social, o
assistente social e com o clínico fora de consultório” (Sawaia, 2007, p. 46),
busca nesta “o desenvolvimento da consciência crítica, da ética, da
solidariedade e de práticas cooperativas ou mesmo autogestionárias, a partir da
análise dos problemas cotidianos da comunidade” (Campos, 2007, p.10). Nesse
sentido, exigiu-se a renúncia da zona de conforto em que se encontrava a
psicologia diante do modelo tradicional de produção do conhecimento e de
atuação profissional, de forma a expandir sua atuação a uma atuação ética e política,
especialmente em contextos de vulnerabilidades de direitos, como acontece com
povos e comunidades e tradicionais.
Segundo
o Decreto Federal Nº 6.040 de 7 de fevereiro de
2000, Povos e Comunidades Tradicionais são “grupos culturalmente diferenciados
e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização
social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para
sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando
conhecimentos, inovações” (Art. 3º, Inciso I).
A
atuação em contextos de povos e comunidades tradicionais embora seja mais explorada
pela Psicologia Social Comunitária não está restrita a essa, ela deve ser lugar
da psicologia como ciência e profissão,
e não apenas de uma abordagem ou área. O próprio Conselho Federal de Psicologia
lançou em 2013 as Referências Técnicas para Atuação das(os) Psicólogas(os) em Questões
Relativas a Terra, trazendo
como a chave para atuação junto a essas comunidades a produção dialética entre
questões objetivas e subjetivas. Uma atuação que vise compreender o significado
de território para a formação da subjetividade, bem como o exercício de
autonomia e emancipação de comunidades e grupos camponeses (Goffman, 2013).
E como parte dos desafios que envolvem essa atuação,
é preciso uma compressão das subjetividades a partir dessa ligação com o significado
de território para os sujeitos desses povos e comunidades e com suas especificidades
culturais (Goffman,
2013). Foi nesse sentido que no
último dia 29 de junho, eu e outra colega que estamos realizando as práticas
das disciplinas nesse contexto, nos propusemos a participar juntamente com
alguns pescadores da Comunidade da Ilha do Fogo, das festividades em
comemoração ao Dia do Pescador que se dão em torno da veneração a São Pedro. O
Dia do Pescador é justamente no dia 29 de junho por ser o Dia de São Pedro. O
santo católico exerceu o ofício da pesca antes de ser apóstolo de Jesus, sendo
venerado como padroeiro dos pescadores.
A
festa aconteceu em Lagoa de Curralinho, Juazeiro-BA, uma comunidade ribeirinha.
Foram duas horas de viagem até a comunidade. Acordamos bem cedo a fim de
chegarmos a tempo de acompanhar toda programação, prevista para iniciar às 8h. Foi
um caminho de aventura e contemplação da natureza e do acolhimento das pessoas pelo
percurso.
Na
chegada a comunidade, a inserção no território do outro levou-me ao encontro
com o meu próprio território, minha história e cultura, pois sendo do campo,
tendo morado na zona rural até os 16 anos, tudo me era familiar, a caatinga por
todos os lados, os modos de vida, as pessoas...
Além do reconhecimento territorial, o reconhecimento da atuação
psicológica que almejo para mim. Está ali naquele momento me fazia ter a
certeza de que a psicologia da comunidade e dos povos e das comunidades tradicionais é algo que me fascina e que me
projeto trilhar.
No
primeiro momento participamos de palestras. Destacando-se a exposição sobre o
território pesqueiro com uma integrante da Comissão de Pastoral da Pesca-CPP de
Juazeiro, com a qual pudemos compreender melhor as questões legais e sociais de
luta pelo reconhecimento desses territórios.
Logo
depois, seguiu-se o momento mais forte dessa vivência: a procissão das águas. Seguimos a caminhada com o santo em um andor¹
em formato de barco e com cantorias até o rio, inclusive tendo que atravessar
parte do caminho com água cobrindo os joelhos. Ao chegar a margem, diversos
barcos esperavam para seguir a caminhada, agora pelas águas. O santo e os
devotos seguiram com a procissão pelas águas. Não sei se era maior a emoção do
balancear do barco ou da mística do momento. Eu tentava registrar tudo com a
câmera, mas sobretudo com o corpo e com a alma.
Na
parte da tarde, teve o almoço coletivo, finalizando a programação com a
celebração litúrgica da missa. O corpo ao final de tudo já não estava com a
mesma disposição do início do dia. O sol e as andanças esgotaram o vigor
físico. Contudo, o vigor interior estava ainda mais abrasado. A energia das
experiências vividas, do contato com a natureza, com as pessoas, com a tradição
pesqueira não me permitiu nem cochilar no retorno para casa, apesar do cansaço.
Agora
já podia dizer que não apenas ouvi ou li sobre a cultura ou tradição deles,
agora levava comigo uma vivência dessa tradição. A inserção nesse território
não me faz completamente preparada para atuar junto dessa comunidade, mas
amplia minha compreensão sobre esse lugar que me proposto a estar, passando de
uma ordem unicamente teórica para também vivencial. Esse adentrar territorial
leva a uma transversalidade da compreensão do fenômeno, perpassando as
dimensões cognitiva, emocional e comportamental.
Que
as práticas continuem... e que continue também a imersão vivencial...
1.padiola ornamentada em que se transportam imagens sacras nas
procissões;
Referências
Brasil. Decreto nº 6.040, de 7 de fevereiro de 2007.
Institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e
Comunidades Tradicionais. Diário Oficial, Brasília, DF, 26 jun. 2001. Art 3º.
Inciso I.
Campos, R.H.F (2007).
Introdução: psicologia social comunitária. In: Campos, R. H.F. (org). Psicologia social comunitária: da alteridade
à autonomia (pp. 9-15). (13a ed). Rio de Janeiro:
Petrópolis.
Freitas, M. F. Q.
(2007). Psicologia na comunidade, psicologia da comunidade e psicologia
(social) comunitária: Práticas da psicologia em comunidade nas décadas de 60 a 90, no Brasil. In:
Campos, R. H.F. (org). Psicologia social
comunitária: da alteridade à autonomia (pp. 54-80). (13a ed). Rio de Janeiro: Petrópolis.
Goffmam, R. (org). (2013). In: Conselho
Federal de Psicologia. Referências Técnicas para Atuação das(os)
Psicólogas(os) em Questões Relativas a Terra (122p). Brasília: CFP.
Sawaia, B. B. (2007).
Comunidade: A apropriação científica de um conceito tão antigo quanto a
humanidade. In: Campos, R. H.F. (org).
Psicologia social comunitária: da alteridade à autonomia (pp. 35-52). (13a ed). Rio de Janeiro:
Petrópolis.
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