O texto de hoje é de uma convidada que aceitou o convite de escrever fenomenologicamente sobre esporte e ela brilhantemente conseguiu expressar sua experiência em um texto repleto de sentido. O NEPFE agradece a esta linda colaboração.
por Thabata Castelo Branco Telles*
Entrei
no karate com 09 anos de idade. Mais ou menos na mesma época que meu irmão, que
tinha 06. Nossos pais acreditavam que essa modalidade de luta poderia trazer
benefícios, como desenvolver auto-confiança, disciplina, perseverança, etc.
Fomos formados a partir da ideia de manter o corpo sempre em movimento.
Tínhamos liberdade para escolher qual atividade fazer, mas precisávamos estar
em alguma (ou até mais de uma).
Já
havia praticado vários esportes, feito dança... mas, em algum momento, parecia
que aquilo ia perdendo o encanto. Assim fiz minha primeira aula de karate: com
certo desencantamento e sem muitas expectativas. Parecia ser mais uma atividade
que eu ia preferir trocar por outras. Mas fui fazendo, fazendo... e gostando
aos pouquinhos. Aquilo que parecia não ter encanto nenhum tomou a forma de algo
que parece sempre ter feito parte da minha história.
Eu não sei
identificar quando passei a gostar de verdade. Mas lembro que um dia, pra variar,
decidi parar. Passados alguns meses, vi algum campeonato de luta na televisão e
me vi vidrada naquilo, parecendo que queria captar cada um daqueles movimentos
e me deu uma vontade danada de fazer tudo aquilo de novo! Percebi que o karate
nunca tinha saído de mim e que eu precisava voltar. Eu devia ter uns 14 anos. E,
desde lá, nunca cogitei parar de treinar. Muitas vezes, passo um tempo parada,
pelas circunstâncias da vida, mas meus olhos ainda brilham ao vestir o quimono,
colocar a faixa, cumprimentar e entrar no dojô, nem que seja só para bater no
saco de pancadas. É um dos lugares em que eu mais me sinto à vontade.
Eu não consigo falar da minha vida antes do karate que,
com certeza, ajudou a construir quem eu sou hoje. Contudo, se antes eu
praticava sem saber muito o porquê; depois desses, talvez, 14 anos, eu tenha
começado a entender aos poucos a minha relação com esse universo. Passei por
etapas importantes e queria destacar aqui a questão da luta. Cedo, entendi que
não gostava de lutas de campeonatos, gostava mais da luta solta: sem proteção,
poucas regras, mas muito cuidado e respeito. Na maioria dos meus treinos de
karate, eu era a única mulher. Demorei anos para entender a dimensão disso e
hoje tenho contado um pouco mais sobre essa história.
Antes, me colocavam pra lutar com as crianças ou com as
outras mulheres – que, muitas vezes, eram menos graduadas do que eu. Com o
passar do tempo e algumas reclamações (isso dá outra história!), consegui lutar
sem que a questão de gênero fosse ressaltada e ela passou a ser um detalhe. Passei
a ser respeitada e já faz muitos anos que conto com ótimos companheiros de
luta. Hoje em dia, são todos homens. As mulheres parecem ter desistido um pouco
e isso me intriga. Vejo muitas mulheres praticando lutas e às vezes até
competindo, mas poucas perseverando e dando aulas, sendo árbitras, fazendo
parte de comissão julgadora de exames de faixa ou até mesmo fazendo pesquisas
na área.
Sei que a situação não acontece só no karate, mas não é
por isso que a gente deve naturalizar essa questão. Semana passada, estava dando
aula e pedi para que uma dupla lutasse (um homem e uma mulher). Ao final,
perguntei como foi e ele falou que foi legal, mas que teve que controlar mais
os golpes por estar lutando com uma mulher. Prontamente, nós duas passamos a
questionar isso, comentando que, se ele fazia isso, como ela ia aprender a
lutar? Que, se ele a respeitava como karateca, precisava entender que ela
também deve passar pelo mesmo aprendizado que ele. Afinal, é só lutando que se
aprende a lutar.
Fico pensando bastante nisso e em como podemos ter
atitudes mais sensíveis a esta realidade. Felizmente, meu mestre é atento a
essa questão, mas acho que ainda precisamos divulgar e conversar mais. Por
vezes, omitia que treinava karate, principalmente por me incomodar com as falas
e caras de espanto, como se eu fizesse algo muito diferente do esperado para
uma mulher. Hoje, tenho tentado me apropriar mais disso, e com a maior
naturalidade possível. Acho muito esquisito pensar que mulheres não podem lutar
ou que sempre lutam de um modo mais fraco. Quando se luta, se abre às
possibilidades daquele encontro diante do outro, o que requer atenção, agilidade,
prudência... e a força é só um dos detalhes. Se o corpo do outro se apresenta
como um desafio, cabe a mim traçar as melhores estratégias que possuo, a partir
do que sei do meu corpo. Cada um tem pontos fortes e fracos e é só na luta que
a gente aprende quais. Lutar é ter que responder ao imprevisível. E cada um
pode fazer isso do seu jeito.
Optei por escrever este relato, entendendo que
experiências vividas são igualmente importantes às explorações teóricas e/ou
filosóficas. Não acredito em uma psicologia do esporte que não se ocupe de
escutar as narrativas dos praticantes, sejam eles competidores ou não. Espero que
não percamos a habilidade de contar e escutar cada vez mais essas histórias. Principalmente
no sentido de uma escuta atenta, que embasa nossas compreensões (inclusive
científicas) sobre o mundo, conforme nos lembra Amatuzzi (1999). Não será
possível mudarmos determinada situação se ela não é bem compreendida a partir
de quem a vivencia.
Por
fim, para reafirmar a importância desse tipo de escuta, importante no cotidiano
e na ciência, resgato Merleau-Ponty (1945/2006), que ressalta que: “A
verdadeira filosofia é reaprender a ver o mundo e, nesse sentido, uma história
narrada pode significar o mundo com tanta ‘profundidade’ quanto um tratado de
filosofia” (Merleau-Ponty, p.19).
Amatuzzi, M. (1990). O que é ouvir. Estudos em Psicologia (PUC/Campinas), 2, ago-dez .
Merleau-Ponty, M. (2006). A fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes (Obra originalmente publicada em 1945).
* Thabata Castelo Branco Telles e doutoranda em Psicologia (FFCLRP_ USP), com ênfase em lutas e fenomenologia. É psicóloga formada pela UNIFOR e Mestre em Psicologia pela mesma universidade. Pesquisadora vinculada ao GT de Psicologia do Esporte da ANPPEP e membro da Associação Brasileira de Psicologia do Esporte.
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