Na postagem de hoje temos uma interessante discussão da nova integrante do NEPFEE, Tamires de Lima, sobre o filme O Escafandro e a Borboleta, vale a leitura do texto e o filme.
Antes do texto um palhinha do filme.
O Escafandro e a Borboleta
e a importância do ouvir
Tamires de Lima
Olá,
você me ouve?
Você consegue ouvir
alguém que não emite palavras da forma ao qual está habituado? Consegue
escutar o silêncio do seu paciente/cliente? Ou mesmo compreender
de verdade o significado do que é colocado pelas pessoas que estão se
comunicando com você? Pois bem. Pense em um garoto, numa sala de aula, rodeada
pelos colegas, em determinada manhã. Em certo momento, essa criança levanta a
sua mão e questiona a sua professora sobre algo. A mensagem é respondida
imediatamente, todavia, há algo de errado. Outra criança da sala reflete
consigo mesma que a sua professora não compreendeu o seu colega, pois respondeu
um tanto diferente do que ele havia perguntado. O garoto não foi realmente
ouvido, concluímos.
[Diariamente nos
portamos como essa professora e também assumimos a posição desse aluno que não
fora ouvido].
Esse relato, trazido
pelo teórico humanista Carl Rogers, citado por Amatuzzi, abre um leque de
questionamentos sobre o que é realmente ouvir. Seria o que colocam os
dicionários? Dar atenção? Atender? Escutar? Perceber? E nada melhor do que colorirmos
as nossas ideias com o auxílio de personagens que dão vida aos nossos questionamentos,
como fez o próprio Rogers, com a sua experiência do garotinho em sala de aula.
Trazemos, então, para cena
Jean-Dominique Bauby, jornalista renomado, que em sua quarta década de vida
enfrentou um acidente vascular cerebral, perdendo todos os movimentos do seu
corpo, ficando impossibilitado de falar da forma convencional. Bauby é o
personagem principal do longa metragem francês O Escafandro e a Borboleta, lançado em 2007, dirigido por Julian
Schnabel, mas foi também o homem que inspirou o filme, baseado em sua
autobiografia.
Encarcerado em seu
próprio corpo, Jean-Dominique ficou recluso em um hospital, onde tinha
consciência de tudo que acontecia à sua volta, porém era incapaz de agir e de
ser ouvido. Dessa forma, logo foi acompanhado por uma ortofonista, a qual
desenvolveu um sistema de comunicação onde Bauby poderia emitir mensagens
utilizando o que estava ao seu alcance, o piscar de seu olho direito, único
movimento possível, devido à síndrome de Locked
in.
A primeira mensagem
emitida por Jean-Dominique à sua ortofonista foi que desejava morrer, todavia,
seguindo o conselho de seu ex. companheiro de trabalho, para agarrar-se ao que
tinha de mais humano, pois assim iria sobreviver, a história de vida do mesmo
teve um desenrolar mais positivo. De início foi muito difícil, mesmo com o
sistema de comunicação desenvolvido. As palavras eram formadas letra por letra,
exigindo muita paciência de quem estava ouvindo e do próprio Jean-Dominique. Mas,
com o tempo, ele foi interagindo mais e mais, até chegar o momento de escolher
escrever um livro.
Amatuzzi, no texto O
que é ouvir, traz Rogers, o qual afirma que ao ser ouvido de fato, o sujeito
sente-se agradecido, aliviado e até mesmo aberto a um processo de mudança. Foi
o que aconteceu com Jean-Dominique. Aos poucos ele foi percebendo que mesmo sem
poder mover músculo algum de seu próprio corpo, a sua imaginação e a sua
memória continuavam ali, em plena agitação. Parou de ter pena de si mesmo, e
isso ocorreu devido a uma escolha, assim como pelas ações facilitadoras das
pessoas que estavam à sua volta, que acreditaram na sua capacidade de
recuperação, ou mesmo de se comunicar, como a sua ortofonista.
Em certo momento,
Jean-Dominique se vê rompendo os limites do seu escafandro. Torna-se uma
borboleta, que alça voos pelo hospital, por outros ambientes, se aventurando em
ter experiências diversas, possibilitadas por sua imaginação e criatividade. O
livro foi sendo delineado a partir dessa sua disposição positiva e da
profissional que o ouviu e redigiu o livro ditado pelo mesmo.
O jornalista-escritor,
assim, voltava à cena e não podemos deixar de fazer uma observação do
conhecimento íntimo que se desenvolveu entre Jean-Dominique e a sua redatora.
Assim como traz Amatuzzi, ela o percebeu enquanto totalidade. Estava realmente em
uma relação com Jean-Dominique, tornando-se presente, tendo a satisfação de
ouvi-lo enquanto pessoa, se atentando às suas potencialidades, o que a
possibilitou ouvir “a música das estrelas” transferida nessa construção de
significados entre ambos.
Jean-Dominique Bauby
transformou o seu silêncio em palavras. Esteve tanto como uma criança que
aprende novos signos, passando a se relacionar de forma diferente com o mundo,
quanto no papel de escritor, que traz à tona coisas novas, por meio da sua obra
literária. Tudo isso impulsionado pelo silêncio que nele existia. E, a partir
dessa ação, significou de uma forma diferente a sua existência e o dos que
estavam à sua volta.
Desenhando uma última
cena do filme O Escafandro e a Borboleta,
voltamos ao momento em que Jean-Dominique está sozinho, em seu quarto no
hospital, sem ninguém que conheça a sua forma de expressar a linguagem, quando
surgem dois homens para entregar certo material solicitado. Após alguns
instantes, chega a sua ortofonista, a qual é questionada por um dos homens se
Bauby fala. Ela responde de forma enfática que não é para fingir que ele não
está ali, mandando-o perguntar isso ao próprio: “pergunte a ele!” E essa fala
da ortofonista nos instiga a concluir o diálogo que propomos nesse texto, entre
Carl Rogers, Amatuzzi e Jean-Dominique Bauby, os quais instigam aos estudantes
de psicologia, psicólogos ou demais profissionais de saúde a não agir como se o
outro não existisse, mas a percebê-lo de forma mais humanizada, ouvindo de
fato, sentindo o silêncio criativo próprio e do outro, se deixando ser envolvido
pela compreensão, por meio de atitudes mais positivas.
Referências:
AMATUZZI, M. M. Silêncio e palavra. In: Por uma
Psicologia Humana Campinas: SP. Alínea editora. 2008. 2ª ed.
_________________ O que é ouvir. Disponível em: https://www.slideshare.net/dmrodrigo/o-que-ouvir-mauro-martins-amatuzzi.
Acessado em: 22 de mai. de 2017.
O escafandro e a
borboleta. Direção de Julian Schnabel. Drama, 112 minutos, França, 2007.
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