Liberdade em tempos de isolamento social.


Por Erika Hofling Epiphanio
e pitaquinhos de Silvana Salomão e Thais Petroni Rocha

Então vamos falar da Pandemia causada pelo novo coronavírus?
Acredito que após 11 dias de isolamento social, sendo bombardeados diariamente com uma avalanche de informações, notícias, piadas, vídeos e mensagens sobre o tema, estamos todos exaustos. Mas ao mesmo tempo, temos a necessidade de nos informarmos, pensarmos e, olha que interessante, temos tempo para refletirmos sobre o que pensamos sobre.
Geralmente nos falta o tempo e com isto, é comum, que pessoas ajam sem pensar, construam conhecimentos sem reflexão, que reproduzam comportamentos e atitudes sem nem ao menos pensar sobre o sentido destes, pois não tiveram tempo para pensar!
Então, podemos ter aqui um olhar positivo sobre o que estamos vivendo?
Eu, particularmente gosto de olhar o lado bom das coisas! Serão resquícios da garotinha que adorava os livros da Pollyana quando adolescente (Pollyana e Pollyana moça, de Eleanor H. Porter, escritos em 1913 e 1915- segundo o wikipédia)? Mas, como me ensinou Pollyana, este é um ponto de vista!
E por falar em ponto de vista, é evidente que teremos pela frente, tempos difíceis, principalmente no que se refere às questões econômicas. Não temos ainda dimensão do impacto social e econômico que este período de isolamento trará, mas creio que todos, temos clareza que será MUITO difícil!
Sobre política, nem se fale, já estamos vivendo um cenário aterrorizante. Tempos difíceis!
Mas eu, embora tenha comigo tais preocupações e reflexões, não sou nem economista e nem cientista política para tecer teses sobre estas perspectivas deste acontecimento mundial.
Creio que nunca, antes foi visto, por alguém vivo hoje, uma situação semelhante. Que em todos os lugares do mundo, e isso significa gente para dedéu, as pessoas tiveram que se isolar do convívio social, tendo que lidar com elas mesmas, com tempo para conversar, se relacionar com os mais próximos e fazer escolhas. Sim, estamos cobrados a fazermos escolhas, quando nos indicam o isolamento, como uma forma de cuidado.
Ficar em casa e nos protegermos e evitar o alastramento do vírus é uma indicação mundial. Certo? Recebemos diversas notícias sobre isto e estamos escolhendo a proteção de nossas vidas, daqueles que amamos e daqueles que nos preocupamos enquanto pessoas solidárias. Lógico que temos as exceções e as pessoas que agem com maldade se aproveitando da situação. Não sou cega para estes, mas neste momento prefiro olhar, uma questão de escolha, para aqueles que seguem respeitando o que nos apresentam como o mais adequado do ponto de vista humano.
Vemos, neste momento, escolhas coletivas sendo construídas que não se refere à casta social, etnia, nacionalidade, ou qualquer forma específica de posicionamento  no mundo.  Em todos os lugares do mundo, aqueles que aderiram à quarentena (que é muita gente), escolheram pelo bem comum e isso, pensando pela perspectiva de alguém que estuda um pouco sobre relações interpessoais, me parece bastante potente.
Penso que há muito tempo as pessoas, em geral, não se relacionam de forma harmoniosa, sendo esta uma das principais causas de sofrimento psíquico em tempos modernos. O motivo, geralmente, está associado às pessoas existindo no automático, sem tempo de se importarem com os outros e cuidarem das relações. Hoje estamos tendo tempo para isso.
Muitas famílias não se relacionam mais, por falta de tempo. Todos correndo com seus afazeres e ocupações, sem tempo de fazer juntos e hoje estamos juntos, isolados dos afazeres do mundo lá fora, sendo então direcionados a nos ocuparmos do mundo íntimo.  As pessoas tem tido tempo para trocar mais com a família e pessoas próximas e se conectarem mais. 
Então, é na relação com o outro, presencialmente, que podemos sugerir que possa haver alguma alteração. Ainda não consigo precisar que tipo de alteração, mas quero acreditar (meu lado Pollyana falando), que podemos ter melhoras na forma como as pessoas venham a valorizar os encontros e algo tão “caro” do ponto de vista humano, e muitas vezes tão desperdiçados com as pessoas o tempo todo no celular quando estão juntas! 

Tem uma frase que gosto de repetir, “nada acontece por acaso”. Às vezes levamos tempo para saber o porquê de termos vivido algo. Ainda não faço ideia dos reais motivos desta loucura que estamos vivendo, mas tenho claro que estamos vivendo, antes mesmo da covid-19 surgir, tempos difíceis no ponto de vista das relações humanas. As pessoas se relacionam, cada vez mais, de forma violenta, desrespeitosa e tóxica. Percebo isto pelo meu olhar enquanto ser social, profissional e principalmente humano, logo, é fato, precisamos URGENTE rever as nossas relações e em tempo de isolamento social é uma grande oportunidade.

Sabemos que entrar em desespero só piora as coisas, logo podemos aproveitar esta oportunidade para botar em ordem a vida interna e as relações significativas. Valorizar mais o que temos e queixar menos do que nos falta (probleminha bem comum no dia a dia de todos nós).
A vida nos conecta e pode nos mostrar que vale a pena: mais um dia de cuidado a nós mesmos, aos que amamos e ás relações com os outros e com o mundo.
Temos tempo para nos cuidar, cuidar de quem está a nossa volta, cuidar da nossa casa. E isso é incrível, pelo menos na MINHA experiência, que geralmente reclamo do pouco tempo. Justifico as minhas ausências e negligências por falta de tempo e agora o tempo está aqui, disponível para cuidar e criar. E olhando por esta perspectiva, cabe uma reflexão sobre liberdade.
As pessoas podem estar se sentindo presas e tolhidas em sua liberdade, mas na verdade, nunca estivemos tão livres como nestes 11 dias. Cabe aqui indicar a leitura um belíssimo tratado sobre o sentido da vida e a noção de liberdade na obra escrita por Viktor Frankl, quando esteve como prisioneiro em campos de concentração durante a segunda guerra mundial.
Sim, estamos livres para ocuparmos nossas vidas da forma que nos faz mais sentido... aproveitando o tempo que nos foi ofertado para fazermos coisas que geralmente não temos tempo.
Estamos sendo privados do convívio social presencial, mas não de nos relacionarmos com os outros.
Estamos tendo a oportunidade de reinventar nossos relacionamentos e valorizar as presenças. Estamos tendo a oportunidade de nos cuidar e olharmos para nós mesmos e até de refletirmos sobre o significado do que nos rodeia, do que realmente nos faz falta e valorizar a vida e as relações. Pois, aconteça o que acontecer, são estas as armas que teremos para enfrentar o porvir: nossas vidas e as relações que nos sustentam enquanto pessoas!
E quanto tempo isso vai durar? Não faço ideia.
Estamos diante do incerto e isso é assustador, mas não temos como prever, logo não temos como antecipar, ou nos pré-ocupar, pois neste momento, só temos que cuidar do nosso agora, pois estamos impedidos de antecipar o futuro, pois não sabemos nada sobre ele.
Qual o impacto nas nossas finanças? No aumento de desemprego? Aumento da miséria? Aumento da violência? Nada é possível prever, mas haverá impacto, isto sim sabemos.
Também não podemos precisar o impacto nas relações interpessoais e sempre acreditei muito no poder das relações como transformação, seja para que lado for! Poderia aqui trazer uma discussão teórica de filósofos que tenho estudado que tem o foco nas relações como Martin Buber e Edith Stein, mas, neste momento, opto apenas a olhar e escrever sobre o meu olhar, o meu ponto de vista e a minha experiência.
Então cabe a cada um olhar para isso, afinal, estamos com tempo para isto, para construirmos relações mais saudáveis, respeitosas e solidárias em nossos lares e poder expandir esta experiência para o mundo lá fora, quando estivermos “liberados”! É uma possibilidade! E pode acreditar, precisaremos MUITO disso. Esta é uma certeza que tenho!
Tenho claro, que há pessoas, vivendo momentos complicadíssimos com relação a isto, pois existem pessoas realmente “confinadas” em espaços pequenos com muitas pessoas e com falta de condições para sobreviver. E sem dúvida, isso me toca e me entristece, mas agora, neste exato momento, não tenho muito o que fazer, além de manter meu compromisso social com as pessoas que trabalham para mim, mantendo o pagamento de seus serviços e prestando apoio psicológico on-line para algumas pessoas gratuitamente. Mas, faz parte do que posso fazer, me manter saudável, equilibrada emocionalmente, paciente, para que as minhas relações sejam harmônicas e para que eu respeite meus limites para ser cuidado e acolhimento para o outro.
É importante deixar claro, que estas reflexões, partem de alguém com muitos privilégios em viver tal experiência.
Não tenho filhos e não estou vivendo a loucura no Homeschooling, que muitas mães estão a ponto de enlouquecer.
Moro em uma casa com espaço. Tenho minhas plantas e meus animais para cuidar, pois amo cuidar! Cuidado é vida! E tudo que eu preciso agora é me conectar com a vida!
Moro com meu companheiro e nos damos bem e não está sendo nem um pouco torturante estarmos convivendo todos os dias o dia todo, como só fazemos quando estamos em férias e juntos (algo que faz tempo que não acontecia devido aos calendários acadêmicos desencontrados).
Tenho, até o momento, emprego e ainda acredito que devo receber salário no próximo mês.
Amo ficar em casa e trabalho muito bem estando em casa. Sou produtiva e disciplinada, o que muito me ajuda a enfrentar este momento, sem tédio, solidão ou desespero.
Por mais que tenho um olhar para a positividade do momento, por escolha, estou preparada para o pior, afinal não adiantar fingir: estamos em guerra!
Sinto-me leve, pois sei que não adianta, neste momento, perder o sono e a tranquilidade, pois vou precisar estar bem para o que vier a seguir.
Muitos aprendizados que tive na vida têm me ajudado a me manter assim. Sou ótima companhia para mim mesma, algo construído ao longo de anos, que, por escolha, vivi de certa forma isolada. Sei plantar, cozinhar e limpar, logo, me “viro nos trinta” se por acaso chegar o extremo da falta. Sei e gosto de ter disciplina, logo me mantenho trabalhando e me exercitando. Algo fundamental para nos mantermos bem. Inclusive indico o vídeo de Viviane Mosé falando sobre educação esportiva e saúde mental (https://www.youtube.com/watch?v=IKOz6DIjGk8). De segunda a sexta, continuo acordando cedo e trabalhando, afinal, vida de professor sempre tem um monte de demandas pendentes, além das novas demandas que chegam o tempo todo em função desta situação. O que não me falta é trabalho!
A diferença é que acordo agora, sem a pressão do despertador, mas quase todos os dias no mesmo horário, mas livre para acordar mais tarde se o corpo assim precisar. Ah que delícia esta sensação de liberdade!
Vivo a liberdade do momento, tendo clareza que vai passar, assim como a necessidade do isolamento vai passar.
E uma certeza carrego comigo: que nada será como antes!
O que será, depende da escolha de cada um, neste exato momento.
O que queremos para nossa vida? O que queremos para nossa família e amigos? O que queremos para o mundo que habitamos?
Eu quero paz no mundo. Quero viver bem com os que amo. Quero continuar estudando e trabalhando em prol de melhores relações no mundo. Quero continuar acolhendo a dor do outro, para transformar experiências ruins, em aprendizados para a vida. Para tudo isso que quero, preciso me cuidar e me manter firme e tranquila, para o que ainda estiver por vir.
Sou grata pelas oportunidades que tive e que tenho.
Sou grata por amar meu trabalho! Sou grata por minhas escolhas! Pois, mesmo se tivesse tido todas as oportunidades que tive, se não tivesse feito as escolhas que fiz, eu não estaria aqui hoje, da forma que estou e sinceramente, não queria estar em outro lugar, nem com outras pessoas e nem fazendo outras coisas!
Aqueles que leram este texto até aqui, convido-os a aproveitar esta oportunidade e dialogar: consigo mesmo e com os que estão próximos e poder com isto construir relações melhores, pois se cuidarmos mais de nossas vidas e das relações que nos sustentam, estaremos, enfim mais preparados para cuidar do mundo lá fora. 
Sairmos melhores do que entramos, do ponto de vista humano, é uma questão de escolha. 
Fique em casa!




Indicações de literatura
Buber, M. Eu e tu. Ed. Cortez e Moraes
Frankl, V. Em busca de sentido: um psicólogo em campo de concentração. Ed. Vozes.
Manganaro, P. Fenomenologia da relação: a pessoa humana em Edith Stein. Juruá.







Comentários

  1. Erika agradeço pela oportunidade que me deu, de conhecer algumas das suas reflexões. É ótimo quando a leitura nos demanda "pensar mais", ao mesmo tempo que nós conforta por encontrarmos similaridades com nossos "pensamentos!
    Não tive acesso aos textos anteriores - caso existam - mas com certeza lerei os próximos!
    Um abraço carinhoso!

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  2. Querida Erika, obrigado por compartilhar o seu novo saber.

    “Então, podemos ter aqui um olhar positivo sobre o que estamos vivendo?”
    Você, generosa, nos diz que sim.

    “Sim, estamos livres para ocuparmos nossas vidas da forma que nos faz mais sentido... aproveitando o tempo que nos foi ofertado para fazermos coisas que geralmente não temos tempo.”
    A sua reflexão é uma boa medida dessa liberdade.

    “É importante deixar claro, que estas reflexões, partem de alguém com muitos privilégios em viver tal experiência.”
    Compartilho desta sua constatação e agradeço por me fazer pensar igual e, principalmente, com coragem de dizer... eu estava com falta deste destemor.

    “Sairemos melhores do que entramos, do ponto de vista humano, é uma questão de escolha.
    Fique em casa!”
    Sua quase oração me inspira e me fortalece... também para ficar em casa.

    Fábio Lang

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  3. ainda e muito precoce para compreendermos como isso nos afetara e as gerações futuras

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