"O crescer"

Hoje, dia 16 de maio de 2022, estamos iniciando mais um semestre letivo na UNIVASF. e para dar as boas vindas ao semestre, iniciaremos com um texto escrito por uma das monitoras das disciplinas Psicologia Fenomenológica-Existencial I e II.


"sobre crescer demais a ponto de não se sentir mais confortável em locais que antes pareciam seguros" imagem e frase Anna Pebeá (@annapebea)


Por Iana Peixoto


Lembro que a primeira vez li sobre Merleau-Ponty foi no 2 período do curso em um artigo sobre o significado da violência sexual na manifestação da corporeidade. Simpatizei com ele, primeiramente, por conta do seu nome. Acho um nome simpático e bom de ler e falar, um nome redondo. Depois, passei a gostar também da sua teoria. Gosto de como é possível vê-la e sentí-la, ou pelo menos  de como eu a vejo e a sinto na minha vida e no meu cotidiano. Também é uma teoria que pode ser relacionada com vários temas, já que todos os temas cruzam a existência de alguma forma e, consequentemente, cruzam o corpo. Resolvi, então, escrever sobre corporeidade e cultura.

Para Merleau-Ponty, o homem não tem um corpo, ele é um corpo. Corpo esse que é consciência encarnada, com intencionalidade, que é o veículo do ser no mundo, seu meio de conexão com ele e com os outros (Labronici; Fegadoli; Correa, 2010). Um mundo dotado de significados, padrões, expectativas. Corpo esse que é, então, subjetividade e expressão. Expressão de si, mas um si que não é somente seu, já que foi construído na coletividade. Coletividade que pode tanto libertar quanto restringir. No caso da nossa sociedade, a segunda opção é a mais comum e é a que pauta a construção da subjetividade desses corpos. Mas, se algo foi construído, é porque não existia previamente.

Faço aqui um entrelaço entre a teoria de Ponty e a de Judith Butler. Butler afirma que o próprio corpo é uma construção, criticando a noção deste como biológico e pré-discursivo. Assim, o próprio sexo, que geralmente é tido como fixo e natural, passa a ser compreendido como cultural e construído discursivamente (Mariano, 2005 apud BUTLER, 2003), estando pautado no binarismo (homem/mulher) e na performance de gênero. Performance é atuação, sendo, neste caso, atuação de normas e valores morais também impostos, mas que são compreendidos e reproduzidos como essenciais. Hábitos que vão desde menino usar azul e menina usar rosa, até os altíssimos índices de cirurgias plásticas, por exemplo. Coisas que estão nos mínimos detalhes, como o jeito de sentar, e também em aspectos grandiosos e significativos, como a forma de amar. Assim, a inscrição do gênero e as possibilidades de sexualidade são sempre socialmente estabelecidas e codificadas pelas relações sociais, sendo moldadas pelas redes de poder. (Louro, 2000). Caso essas normas não sejam seguidas ou caso a atuação não seja bem executada, reprimi-se esse corpo até que ele obedeça ou desapareça. E a principal arma desse poder regulador é justamente a essencialização desses aspectos e sua implementação na subjetividade dos sujeitos, individualizando questões que são coletivas e promovendo uma autovigilância e autodisciplina. Absorvemos, reproduzimos e repassamos, como pode-se perceber tão bem nas famílias. Desse modo, como Butler afirma, são práticas criadas discursivamente e justamente por conta desse caráter podem ser repensadas e revertidas. 

Assim, a máxima da segunda onda feminista, “O pessoal é político” resume bem a forma que a subjetividade (experenciada através do corpo) é construída socialmente. Todo corpo é um corpo político pois carrega em si discursos e significados que passaram a constituir sua identidade. Acho importante essa reflexão, especialmente dentro da Psicologia, pois ela combate uma tendência neo-liberal contemporânea de individualizar as causas dos sofrimentos e culpabilizar quem os sente. A Psicologia, portanto, deve ser uma luta política, uma vez que esse âmbito impacta diretamente a existência do ser humano, que é justamente o seu objeto de estudo. O indivíduo traz consigo o mundo para a sessão de terapia. Ignorar esse mundo seria, então, ignorar o próprio sujeito. 

Lembro que na pré-adolescência observava muito como as mulheres, especialmente minha mãe, sentavam de pernas cruzadas. Eu considerava isso o auge da feminilidade, ficava pensando quando seria o momento certo para começar a cruzar as minhas, quando eu seria madura, ou mulher, o suficiente pra isso. Às vezes até tentava, mas era meio desconfortável e ficava com vergonha, como se fosse algo artificial (era). Hoje eu as cruzo com bastante frequência, principalmente quando quero me sentir mais adulta. Com isso, quero destacar como essas imposições são absorvidas aos pouquinhos durante o desenvolvimento, como a criança capta as coisas nos detalhes e as imita até se tornar algo natural e parte da sua expressão. Seguindo o pensamento de Merleau-Ponty, a percepção da criança do mundo se dá através da experiência e ela se relaciona com o outro e o imita da maneira como lhe é possível compreender e imitar, não havendo ainda uma atribuição de sentido ao comportamento. (Telles, 2014a apud Merleau-Ponty, 2001/2006). Assim, a criança visa atingir o mesmo resultado do adulto, o que não necessariamente ocorrerá. Ela vai se expressando a partir desses padrões pré-estabelecidos e adicionando particularidades suas conforme vai se relacionando com o mundo. (Telles,2014a).

São movimentos corporais e hábitos que muitas vezes restringem e sufocam. A beleza realmente dói, fisicamente e emocionalmente. Não é gostoso usar roupas que machucam ou gastar bastante dinheiro com procedimentos e maquiagens. Também não é legal ter que reprimir seus sentimentos até que eles fiquem tão escondidos ao ponto de nem você mesmo os reconhecer. A relação com esse corpo/existência, acaba tornando-se adoecedora e vazia de um sentido genuíno, uma vez que o vemos como algo separado, como um mero objeto submetido à racionalidade, em uma relação ausente de cuidado. Uma das ideias de Ponty é justamente quebrar essas dualidades, como a de interno-externo, compreendendo a existência pela ambiguidade e abertura (Telles, 2014b), como também propõe Butler.

É o corpo que nos abre e nos fecha ao mundo e ao outro, sendo local da experiência vivida e do entrelaçamento entre natureza e cultura. (Telles, 2014b). Nascemos em um mundo cheio de significados e os vamos captando pela experiência, em uma troca constante com pessoas que também os foram captando e os transformando. É justamente essa relação com o outro, a intercorporeidade, que possibilita a percepção do que é universal e do que é particular no sujeito (Telles, 2014b). A partir disso, vamos construindo a noção de identidade, que é realmente uma grande mistura de várias interferências.

Finalizo, então, de forma otimista. A fenomenologia compreende o homem em uma constante troca, em que o mundo age sobre ele ao mesmo tempo que ele age sobre o mundo. Que possamos agir para o melhor, criando novas formas de existir ausentes de grilhões e em conexão com o que possui um sentido genuíno para nós. Observar e repensar nossos movimentos, nossas relações e o contexto em que estamos para viver de forma leve, sem esquecer também a importância da dor e da raiva nesse processo. Liberdade para o sentir e o viver. 

 

Imagem criada pela autora (Iana Peixoto) 

Referências

LABRONICI, Liliana Maria; FEGADOLI, Débora; CORREA, Maria Eduarda Cavadinha. Significado da violência sexual na manifestação da corporeidade: um estudo fenomenológico. Revista da Escola de Enfermagem da USP, v. 44, p. 401-406, 2010.

LOURO, L. G. Pedagogias da Sexualidade. In: LOURO, L. G. (Org.) O corpo educado: pedagogias da sexualidade. 2 ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2000.

MARIANO, Silvana Aparecida. O sujeito do feminismo e o pós-estruturalismo. Revista Estudos Feministas, v. 13, n. 3, p. 483-505, 2005.

TELLES, Thabata Castelo Branco. A infância na fenomenologia de Merleau-Ponty: contribuições para a psicologia e para a educação. Revista do NUFEN, v. 6, n. 2, p. 4-14, 2014.

TELLES, Thabata Castelo Branco; MOREIRA, Virginia. A lente da fenomenologia de Merleau-Ponty para a psicopatologia cultural. Psicologia: Teoria e Pesquisa, v. 30, n. 2, p. 205-212, 2014.


Comentários