Um Passeio de Carro

O texto de hoje é uma produção de mais dos monitores da disciplinas Psicologia  Fenomenológica-Existencial do curso de psicologia da UNIVASF. Um texto profundo. Aproveitem a viagem



 Por Silvio Gabriel Linhares Guimarães

Creio que nesse momento você começar a ler esse texto sem entender muito bem sobre o que se trata, já que pouco ou quase nada pode ser compreendido pelo título, mas quero fazer uma proposta. Vamos entrar em um veículo de alta velocidade para um passeio desafiador, assim como Lacan dirigia e fazia Heidegger gritar assustados. Para nos acompanhar, vamos levar nosso cão mais fiel, um pinscher que pode atingir tamanhos estranhos que podem superar até um elefante. Talvez seja melhor mudarmos de animal, mas sua fidelidade canina é necessária para a compreensão do nosso caminho.

Lacan e Heidegger tiram uma proximidade que poderíamos até dizer que eram amigos, mas o que podemos ressaltar são dois pontos que nos guiarão. O primeiro, Lacan, tradutor de Heidegger pro francês, que dirigiu um carro em alta velocidade com o estimado alemão que esbravejava e se assustava com o perigo iminente. Tal fato é o que nomeia o presente texto, porém, o cerne de nossa discussão se dá em um tema que foi debatido por ambos, mas que não se esgotou com apenas essa dupla apreciação. Na verdade, não só não se esgotou como abriu uma gama de autores que se propuseram a discutir a matéria. Estamos falando da Angústia (aqui propositalmente escrita com a primeira letra maiúscula para destacar sua particularidade).

A Angústia é o afeto que não engana, como aponta Lacan. É o afeto que mereceu por si só um seminário (10) completo. Diante disso, para toda trilha ou caminho novo que pretendemos seguir, precisamos nos apoiar em algo que seja nosso fiel (compreenda o termo “fiel” em múltiplos sentidos, incluindo o de “fiel da balança”). A Angústia opera então como uma bússola que nos aponta para o caminho rumo a verdade, ao núcleo da nossa falta, e talvez esse seja o trajeto de toda a vida. Aqui, metaforicamente, quis dar o nome de Angústia à um pinscher que é conhecido comumente pelo seu comportamento bravio e seu descontrole, mas que também possui uma fidelidade ao dono ou à dona escolhido ou escolhida e assim torna ele ou ela únicos, tal qual a própria Angústia se apresenta em fazer o sujeito tornar-se único e manifestar essa existência singular através dos seus desejos e como lida com eles. Talvez, aqui fosse o momento de se pensar em um outro animal. Eu diria de se pensar num lobo, mas não um Canis lupus qualquer, já que estamos falando de canídeos desde o começo. O lobo da estepe (Canis lupus campestris) seria o mais indicado, não pelas suas características de espécie, mas pelo seu papel na literatura. O livro de Hermann Hesse, de 1927, leva justamente o nome desse animal em seu título e nos conta a história de Harry Haller, um homem de meia idade, intelectual, que sofre muito em se sentir deslocado do mundo e não se adapta ao século em que vive, além de ser constantemente atormentado por uma dualidade que toma seus momentos de alegria e prazer, justamente por se perceber sendo um homem de hábitos refinados e pertencente a burguesia alemã e sendo também uma besta selvagem, uma fera, um lobo da estepe que subverte valores, que não suporta a hipocrisia de uma vida fútil, que busca expressar sua violência contra os outros e contra si. A Angústia pode se apresentar justamente assim, como um arrebatador afeto que cinde toda a realidade construída sobre alicerces vazios de sentido, porém faz lastro com aquilo que se é e faz rastro por toda existência.

Heidegger aponta que são infinitas escolhas para uma vida finita e viver sem levar isso em conta é justamente afastar-se de sua autenticidade, ou seja, ignorar a Angústia como bússola é justamente negar uma existência autêntica. Vale pensar que Heidegger era leitor de Nietzsche e de Heráclito, então podemos entender como é importante o entendimento da transvaloração de todos os valores do Homem para um processo de criação de novos valores e de uma busca contínua do processo de superar o niilismo (podemos aqui entender como a falta absoluta de sentido). Então, o sentido da vida, se é que pode existir, ele é único e alinhado à Angústia daquele sujeito.  A sua relação com sua Angústia é de vital importância para a constituição do que se é, porém a forma como se lida com ela pode ser aceitando e seguindo como esse indicador de sentido e constituição do sujeito ou pode-se tentar lutar e suprir completamente a Angústia, porém esse caminho levaria sempre ao fracasso, já que o tamponar esse veio ao invés de minerá-lo só vai fazer com que o leito do rio da vida seja cada vez mais difícil de navegação. Podemos entender isso desde o monge dinamarquês Kierkegaard, que apresentou seus três (que na verdade eram quatro) estágios para se lidar com a Angústia. Para além do caráter religioso, o lidar com a Angústia se baseia sobretudo no aceitar que ela faz parte da vida e usá-la justamente a favor de uma forma de viver mais autêntica, mais real e mais própria ao sujeito.

Poderia aqui falar longamente de vários outros autores que também pensaram a Angústia, como Freud, Sartre e Camus, entretanto é preciso pensarmos na nossa própria Angústia, nosso próprio animal, nosso próprio passeio de carro. Isso te desespera ou te movimenta?


Dicas de leitura:

O infamiliar - Freud 

Ser e Tempo - Heidegger 

Seminário 10 - Lacan

O Lobo da Estepe - Hermann Hesse 

O Mito de Sísifo - Camus

 A náusea - Sartre


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