O MITO DE SÍSIFO E A EXPERIÊNCIA DO ABSURDO

 Caros e caras leitores (as).

A postagem de hoje vem encerrar as publicações deste ano.

Mais um ano bastante desafiante se encerra e nós do NEPFEE desejamos a todos e todas que nos acompanham um excelente fechamento de ciclo e que 2023 venha renovando a nossas experiências e construindo encontros saudáveis e potentes. 

O texto de encerramento do ano, trata um tema que se mostra de grande relevância para que possamos refletir e cuidar: o suicídio, e vamos ao texto.

Por Silvio Gabriel Linhares Guimarães.



        Boa parte dos artigos e livros que se propõem a discutir a temática do suicídio iniciam com uma epígrafe destacando a frase inicial do livro O Mito de Sísifo de Albert Camus “só existe um problema filosófico realmente sério: o suicídio. Julgar se a vida vale ou não vale a pena ser vivida é responder à pergunta fundamental da filosofia” (2018, p.17). Cabe agora alinhavar uma presunçosa exegese de tal
pensamento, para que se faça possível um olhar sobre a afirmação da vida pela ausência de sentido.

    Camus busca a figura mitológica de Sísifo para ilustrar sua obra. Para tanto, é preciso um pensamento ampliado da figura da personagem grega, uma vez que seu trabalho eterno não resume toda sua existência. Na mitologia, foi rei de Éfira e conhecido por ser o mais astuto entre os Homens, uma vez que seu caráter moralmente duvidoso o permitia enganar até mesmo a morte. Certa feita, ao notar que seu rebanho diminuíra, resolveu marcar suas ovelhas para descobrir quem as roubava, então chega ao mais perspicaz dos ladrões, Autólico. Sua vingança contra o gatuno foi seduzir a filha e engravidá-la. Outros feitos atribuídos a Sísifo incluem dedurar Zeus em troca de água para sua cidade, além de enganar Perséfone e conseguir sair do Hades.

        A digressão realizada se justifica para pensar de qual vida estamos falando ante a moral vigente. Sísifo foi condenado a rolar uma pesada pedra subindo uma montanha e, no topo, ela descia, assim repetindo por toda a eternidade. O grego não é um exímio paladino da moral, mas um sujeito contraditório, de moral flexível, condenado a sofrer pela ausência de qualquer sentido no trabalho que realiza, assim como boa parte de qualquer ser humano atual. É nesse trabalho sem qualquer sentido, extenuante e eterno que Camus faz sua alegoria

        O filósofo aponta a solidão, o desamparo, o desespero e o silêncio do mundo quando questionado sobre o sentido da vida como constituintes da condição humana, chegando a escrever que “[a vida] será tanto melhor quanto menos sentido tiver” (Camus, 2018, p.67). É mister ressaltar que isso compõe o que é chamado de absurdo, uma vez que surge justamente da disparidade vivida e experienciada entre os conflitos humanos que buscam por uma resposta e o silêncio ensurdecedor do mundo.

        O absurdo é, antes de tudo, uma experiência que precisa ser vivida de maneira consciente. O homem deseja encontrar valores estáveis e sentidos para ancorar sua existência, entretanto, tudo que surge no horizonte são questionamentos, dúvidas, incertezas e valores flexíveis. Diante disso, é destacada a necessidade de revoltar-se contra tudo isso, mas aceitando de maneira consciente o absurdo do existir, como o autor destaca em “viver é fazer que o absurdo viva. Fazê-lo viver é, antes de mais nada, contemplá-lo” (Camus, 2018, p.68). Aceitar a experiência do absurdo é reafirmar a vida.

        O homem absurdo então é aquele que desconsidera o eterno e passa a viver sua vida sem se preocupar com o que irá acontecer depois da morte, aceita que não há amanhã e, a partir disso, extrai sua liberdade mais profunda, já que toda a vida condicionada até então exprimia uma ideia de liberdade completamente ilusória, vivendo por uma escala de valores que não lhe é própria, assim destacando que a moral de uma pessoa só consegue ter algum sentido através da quantidade e da variedade de experiências acumuladas. Através do contínuo experienciar e do constante afirmar-se no conflito com o mundo é que o homem pode manter o absurdo, assim trazendo para seu convívio e aceitação tanto a ontológica inospitalidade do mundo quanto a ontológica liberdade.

        Para Camus, só a consciência viva é capaz de afirmar que a vida é absurda, assim tornando o estar vivo como a única condição necessária para a manutenção entre a condição humana e a mundana, diante disso afirma “extraio então do absurdo três consequências que são minha revolta, minha liberdade e minha paixão. Com o puro jogo da consciência, transformo em regra de vida o que era convite à morte – e rejeito o suicídio” (2018, p.77).

        O rejeitar da morte voluntária se dá na revolta ante o vazio de sentidos apriorísticos do mundo, no verdadeiro exercício da liberdade e no enlaçar-se com o absurdo na produção das próprias paixões. Diante disso, é o saber que ao final do dia, a pedra ainda irá rolar, independentemente de ser a mais pudica e ilibada das pessoas ou a mais vil delas, então cabe ao homem fazer da sua condição, o momento de afirmação de sua existência, uma vez que “assim como, em certos dias, a descida é feita na dor, também pode ser feita na alegria” (Camus, 2018, p.139). Assim é preciso se pensar a felicidade do homem absurdo, já que para Camus, o absurdo e a felicidade são inseparáveis, uma vez que ela estaria em o destino pertencer ao próprio homem, não delegando a um deus e se apegando a dores inúteis, mas experienciando no mundo o que lhe é possível e desejado, o que torna que toda a alegria estaria alicerçada em pertencer a si próprio. Diante disso, Camus encerra sua obra afirmando “é preciso imaginar Sísifo feliz” (2018, p.141).

    Sísifo encontra seu sentido no próprio trabalho de empurrar a pedra, mesmo com as dores da condenação eterna e o peso da matéria geológica. Em clara analogia aos processos existenciais, há uma discussão entre suportar o sofrimento e manter a vida, rejeitando o suicídio e estabelecendo formas simbólicas de significação para a tarefa. Diante disso, cabe continuar o pensamento pela cultura grega ao evocar o verbo “νέχω” (anéchō), presente na raiz do pensamento sobre a tolerância e que muito se relaciona a com história alegorizada por Camus, uma vez que sua tradução aparece muitas vezes como “eu sofro”, “eu tolero”, “eu suporto”, entretanto, com um olhar mais atencioso à construção do termo, é possível compreender com o sentido de “elevar”, “suportar um peso para erguê-lo”, assim como Sísifo faz com a pedra todos os dias (Marques, 2020). Pensar no homem que toma para si o sofrimento do silenciamento do mundo e torna disso sua forma de liberdade é pensar naquela que resiste à ideia da morte voluntária, suporta a dor da ausência apriorística de sentidos e, por meio da revolta, cria para si um sentido no próprio suportar, no próprio erguer único da pedra até o topo da montanha. A revolta é também um meio de tolerância, de buscar meios de lidar com o sofrimento e, com isso, tornar possível um meio de próprio e único de estabelecer consigo um sentido naquilo que se faz. Tolerar é também levar sua pedra, perceber o sofrimento desse trabalho, buscar sentido naquilo que faz, além de possibilitar um olhar esperançoso de que o rolar inevitável não resume todo o caminho, o que amplia as propostas de cuidados e lança um olhar resiliente aos desígnios da vida.

    A rejeição do suicídio não é a negação do sofrimento biopsicopoliticossocial, mas a possibilidade uma criação de novos horizontes, de um cuidado integral, de uma ampliação das perspectivas existenciais e, sobretudo, do resgate da autonomia daquele que sofre. Dessa forma, a posse do fenômeno do suicídio regida pela medicalização, como resultado dos dispositivos biopolíticos, que coloca o imperativo da vida a qualquer custo, empobrece a discussão sobre a ausência tácita do sentido da vida, bem como legitima tratamentos morais e ortopédicos realizados sem qualquer reflexão crítica (Almeida, 2021). Dito isso, é preciso imaginar uma psicologia focada na produção subjetiva idiossincrática.

  

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Almeida, F. A. (2021). Suicídio e medicalização da vida: reflexões a partir de Foucault. Curitiba: CRV

Camus, A. (2018). O mito de Sísifo (Ari Roitman, Paulina Watch, Trad.). 14ªed. Rio de Janeiro: Record.

Marques, D. (2020). Para o léxico da tolerância: contribuição de um verbo grego antigo. Revista De Antropologia Da UFSCar12(1), 235–255. https://doi.org/10.52426/rau.v12i1.339

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