Caros e caras leitores (as).
A postagem de hoje vem encerrar as publicações deste ano.
Mais um ano bastante desafiante se encerra e nós do NEPFEE desejamos a todos e todas que nos acompanham um excelente fechamento de ciclo e que 2023 venha renovando a nossas experiências e construindo encontros saudáveis e potentes.
O texto de encerramento do ano, trata um tema que se mostra de grande relevância para que possamos refletir e cuidar: o suicídio, e vamos ao texto.
Por Silvio Gabriel Linhares Guimarães.
Camus busca a figura mitológica de Sísifo para ilustrar sua
obra. Para tanto, é preciso um pensamento ampliado da figura da personagem
grega, uma vez que seu trabalho eterno não resume toda sua existência. Na
mitologia, foi rei de Éfira e conhecido por ser o mais astuto entre os Homens,
uma vez que seu caráter moralmente duvidoso o permitia enganar até mesmo a
morte. Certa feita, ao notar que seu rebanho diminuíra, resolveu marcar suas
ovelhas para descobrir quem as roubava, então chega ao mais perspicaz dos
ladrões, Autólico. Sua vingança contra o gatuno foi seduzir a filha e
engravidá-la. Outros feitos atribuídos a Sísifo incluem dedurar Zeus em troca
de água para sua cidade, além de enganar Perséfone e conseguir sair do Hades.
A digressão realizada se justifica para pensar de qual vida
estamos falando ante a moral vigente. Sísifo foi condenado a rolar uma pesada
pedra subindo uma montanha e, no topo, ela descia, assim repetindo por toda a
eternidade. O grego não é um exímio paladino da moral, mas um sujeito
contraditório, de moral flexível, condenado a sofrer pela ausência de qualquer
sentido no trabalho que realiza, assim como boa parte de qualquer ser humano
atual. É nesse trabalho sem qualquer sentido, extenuante e eterno que Camus faz
sua alegoria
O filósofo aponta a solidão, o desamparo, o desespero e o
silêncio do mundo quando questionado sobre o sentido da vida como constituintes
da condição humana, chegando a escrever que “[a vida] será tanto melhor quanto
menos sentido tiver” (Camus, 2018, p.67). É mister ressaltar que isso compõe o
que é chamado de absurdo, uma vez que surge justamente da disparidade vivida e
experienciada entre os conflitos humanos que buscam por uma resposta e o
silêncio ensurdecedor do mundo.
O absurdo é, antes de tudo, uma experiência que precisa ser
vivida de maneira consciente. O homem deseja encontrar valores estáveis e
sentidos para ancorar sua existência, entretanto, tudo que surge no horizonte
são questionamentos, dúvidas, incertezas e valores flexíveis. Diante disso, é
destacada a necessidade de revoltar-se contra tudo isso, mas aceitando de
maneira consciente o absurdo do existir, como o autor destaca em “viver é fazer
que o absurdo viva. Fazê-lo viver é, antes de mais nada, contemplá-lo” (Camus, 2018,
p.68). Aceitar a experiência do absurdo é reafirmar a vida.
O homem absurdo então é aquele que desconsidera o eterno e
passa a viver sua vida sem se preocupar com o que irá acontecer depois da
morte, aceita que não há amanhã e, a partir disso, extrai sua liberdade mais
profunda, já que toda a vida condicionada até então exprimia uma ideia de
liberdade completamente ilusória, vivendo por uma escala de valores que não lhe
é própria, assim destacando que a moral de uma pessoa só consegue ter algum
sentido através da quantidade e da variedade de experiências acumuladas. Através
do contínuo experienciar e do constante afirmar-se no conflito com o mundo é
que o homem pode manter o absurdo, assim trazendo para seu convívio e aceitação
tanto a ontológica inospitalidade do mundo quanto a ontológica liberdade.
Para Camus, só a consciência viva é capaz de afirmar que a
vida é absurda, assim tornando o estar vivo como a única condição necessária
para a manutenção entre a condição humana e a mundana, diante disso afirma
“extraio então do absurdo três consequências que são minha revolta, minha
liberdade e minha paixão. Com o puro jogo da consciência, transformo em regra
de vida o que era convite à morte – e rejeito o suicídio” (2018, p.77).
O rejeitar da morte voluntária se dá na revolta ante o vazio
de sentidos apriorísticos do mundo, no verdadeiro exercício da liberdade e no
enlaçar-se com o absurdo na produção das próprias paixões. Diante disso, é o
saber que ao final do dia, a pedra ainda irá rolar, independentemente de ser a
mais pudica e ilibada das pessoas ou a mais vil delas, então cabe ao homem
fazer da sua condição, o momento de afirmação de sua existência, uma vez que
“assim como, em certos dias, a descida é feita na dor, também pode ser feita na
alegria” (Camus, 2018, p.139). Assim é preciso se pensar a felicidade do homem
absurdo, já que para Camus, o absurdo e a felicidade são inseparáveis, uma vez
que ela estaria em o destino pertencer ao próprio homem, não delegando a um
deus e se apegando a dores inúteis, mas experienciando no mundo o que lhe é
possível e desejado, o que torna que toda a alegria estaria alicerçada em
pertencer a si próprio. Diante disso, Camus encerra sua obra afirmando “é
preciso imaginar Sísifo feliz” (2018, p.141).
Sísifo encontra seu sentido no próprio trabalho de empurrar
a pedra, mesmo com as dores da condenação eterna e o peso da matéria geológica.
Em clara analogia aos processos existenciais, há uma discussão entre suportar o
sofrimento e manter a vida, rejeitando o suicídio e estabelecendo formas
simbólicas de significação para a tarefa. Diante disso, cabe continuar o
pensamento pela cultura grega ao evocar o verbo “Ἀνέχω”
(anéchō), presente na raiz do
pensamento sobre a tolerância e que muito se relaciona a com história
alegorizada por Camus, uma vez que sua tradução aparece muitas vezes como “eu
sofro”, “eu tolero”, “eu suporto”, entretanto, com um olhar mais atencioso à
construção do termo, é possível compreender com o sentido de “elevar”,
“suportar um peso para erguê-lo”, assim como Sísifo faz com a pedra todos os
dias (Marques, 2020). Pensar no homem que toma para si o sofrimento do
silenciamento do mundo e torna disso sua forma de liberdade é pensar naquela
que resiste à ideia da morte voluntária, suporta a dor da ausência apriorística
de sentidos e, por meio da revolta, cria para si um sentido no próprio
suportar, no próprio erguer único da pedra até o topo da montanha. A revolta é
também um meio de tolerância, de buscar meios de lidar com o sofrimento e, com
isso, tornar possível um meio de próprio e único de estabelecer consigo um
sentido naquilo que se faz. Tolerar é também levar sua pedra, perceber o
sofrimento desse trabalho, buscar sentido naquilo que faz, além de possibilitar
um olhar esperançoso de que o rolar inevitável não resume todo o caminho, o que
amplia as propostas de cuidados e lança um olhar resiliente aos desígnios da
vida.
A rejeição do suicídio não é a negação do sofrimento
biopsicopoliticossocial, mas a possibilidade uma criação de novos horizontes,
de um cuidado integral, de uma ampliação das perspectivas existenciais e,
sobretudo, do resgate da autonomia daquele que sofre. Dessa forma, a posse do
fenômeno do suicídio regida pela medicalização, como resultado dos dispositivos
biopolíticos, que coloca o imperativo da vida a qualquer custo, empobrece a
discussão sobre a ausência tácita do sentido da vida, bem como legitima
tratamentos morais e ortopédicos realizados sem qualquer reflexão crítica
(Almeida, 2021). Dito isso, é preciso imaginar uma psicologia focada na
produção subjetiva idiossincrática.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
Almeida,
F. A. (2021). Suicídio e medicalização da vida: reflexões a partir de
Foucault. Curitiba: CRV
Camus, A.
(2018). O mito de Sísifo (Ari Roitman, Paulina Watch, Trad.). 14ªed. Rio
de Janeiro: Record.
Marques, D. (2020). Para o léxico da
tolerância: contribuição de um verbo grego antigo. Revista De
Antropologia Da UFSCar, 12(1), 235–255.
https://doi.org/10.52426/rau.v12i1.339
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