Café fenomenológico: Humanos, árvores e a guerra

 Caros leitores e amigos e amigos leitores.

O início desta postagem está sendo escrito pela Erika Epiphanio, coordenadora do NEPFEE.

Primeiramente peço desculpas pelo sumiço, mas realmente as demandas não tem me permitido alimentar como gostaria este blog, que tenho grande afeto e respeito, por ser um espaço de compartilhamento de conhecimento, experiências e divulgação de eventos promovidos pelo NEPFEE. Sendo que um dos importantes objetivos deste blog é o incentivo a leitura e a escrita. 

Ao longo dos quase 10 anos desde sua criação, muitos estudantes foram provocados a publicarem textos produzidos por eles, ou em algum projeto coordenado por mim ou nas disciplinas que ministro.

Os ultimos semestre foram realmente muito corridos para mim, me impossibilitando de fazer as seleções dos textos dos meus estudate.

No final deste semestre, em uma das minhas últimas aulas da disciplina Psicologia Fenomenológica-existencial II, em uma apresentação da atividade café-fenomenológico, que é um exercício reflexivo em que os alunos devem trazer reflexões fenomenológicas de alguma obra artística, me senti novamente provacada a oferecer este espaço de publicidade aos textos dos estudantes. 

Aqui neste blog já compartilhamos alguns belos textos, destas atividades e hoje vamos as reflexões de um jovem estudante de psicologia, que com delicadeza, sensibilidade e afeto-ações traz reflexões sobre a vida, o preconceito e a diversidade humana.


Por  Ian Carvalho Novais de Moraes


A partir da música "War" https://www.youtube.com/watch?v=ZINQegZfu6Acantada por Sinéad O’Connor em sua apresentação no SNL, podemos refletir sobre as formas de opressão dos humanos à outros humanos que ao longo da história, têm perpetuado uma política de morte, violência e guerra, todas interligadas às relações de poder e interesses ideológicos e econômicos. Estas relações subjugam "raças", classes sociais, modalidades de existência e categorizações de características constitutivas como gênero e sexualidade, impondo hierarquias valorativas.

A respeito disso, utilizarei um exemplo de minha própria experiência para discutir a problemática, e trabalharei alguns conceitos fenomenológicos para refletir sobre. Recentemente sofri um ataque homofóbico, quando estava com um homem que me relaciono, e este ao chegar e subir na calçada de casa, me deu um beijo, um vizinho bêbado testemunhou o ato e começou a nos ameaçar, gritar "viadinhos", dizendo que iria nos agredir. Ele empurrou fortemente nosso portão e quebrou algumas garrafas de cerveja na calçada de casa.

Ao analisar o fato com um olhar mais crítico, posso pensar sobre as razões que levaram o sujeito a ter essa reação. À primeira vista no plano das aparências, ele é apenas um indivíduo com preconceitos e homofobia. No entanto, é necessário um olhar mais amplo que possa compreender, na conjuntura do ato, fatores implícitos além do indivíduo, realizando a suspensão da atitude natural de julgamento (Epoché). Afinal, é sabido que ninguém nasce violento ou preconceituoso. 

Essas são avaliações endoculturais, refletidas ou irrefletidas (não-conscientes), obtidas na dimensão social, nos processos de diferenciação e valoração culturalmente estabelecidos, não originados aqui, mas com genealogias longínquas em espaço e tempo. Ao focar a interpretação apenas no plano individual, limitamos nossa compreensão. Não se trata de eximir o indivíduo de culpa, mas de reconhecer que, ao observar apenas a figura aparente, apagamos o fundo e observamos apenas o sintoma, não a causa. Velamos os aspectos políticos, discursivos e ideológicos que através de mecanismos da linguagem e do exercício do poder, continuam existindo e se conservando/naturalizando ao longo da história humana. Fazendo então necessário o exercício de compreender o ser enquanto um ser-no-mundo, este exercício rompe a visão de um presente "puro", reconhecendo que o presente está repleto de passado e contextos interconectados. 

Aquele indivíduo homofóbico e agressivo, assim como nós, não é apenas o ser presente de uma pessoa, mas uma convergências de influências externas (Sociogenese) e pessoais. Seus comportamentos, pensamentos, sentidos e percepções, sua moral, não possuem origem unicamente na pessoa. Através de instituições, ordens políticas e socioculturais, sofremos influências, passamos por podas, treinamentos e correções. Somos inclinados a assumir determinada posição estética, física, e simbólica desde a tenra infância, sendo nessa dinâmica, multi-subjetividades e inter-corporalidades que atravessam de certa forma na materialidade de um corpo. Como afirma Freud (1917/1944) o ego não é o senhor de sua própria casa.

Há estruturas sociais que frequentemente se mostram mais imperativas do que o próprio esforço da liberdade e vontade individual do ser humano. Um exemplo disso é a tese da necropolítica de Achille Mbembe(2018), que demonstra como certos poderes gerenciam e ditam quem possui o direito à vida, enquanto outros são subjugados à uma política de morte ainda em vida, direcionados ao silêncio estéril e aniquilamento. Por meio de dispositivos jurídicos, territoriais, econômicos, culturais, políticos, ideológicos, discursivos, carcerários e policiais, bem como pela privação intencional de recursos educacionais e alimentares, esses poderes controlam o destino das vidas humanas.

         Gosto de pensar sobre as micorrizas e acredito que elas podem ajudar a compreender este fenômeno de ser-no-mundo através de uma metáfora entre o ser humano e as árvores. As micorrizas são ligações mutualísticas entre árvores e fungos que se espalham por florestas imensas através das raízes, conectando-as, permitindo a troca de nutrientes e informações eletroquímicas, fundamentais para a vida. Quando olhamos uma árvore em uma floresta intocada pelo homem, pensamos ser apenas uma, mas por trás, latente, está conectada a um organismo plural. Ao deslocar a atenção para apenas uma árvore, observamos parte de um todo, ignoramos o seu ecossistema. A soma das partes, ou seja, a totalidade das árvores e fungos, converge em um grande organismo vivo funcionando comunalmente, crescendo, reproduzindo, transformando-se, existindo.       

Penso como esse funcionamento das árvores contribui para refletir sobre o humano e suas características sociais e existenciais. Rompendo o aparente e refletindo sobre o subjacente, aquilo que está implícito, que nos constitui, aspectos como a história, linguagem, discursos, os significantes e significados, laços sociais, as tradições culturais e as formas políticas de existir e controlar essa existência, acessíveis mediante a suspensão da atitude pré-reflexiva de julgamento.

 Esse exercício reflexivo é crítico, capaz de subverter formas individualistas e naturalizadas de saber, ser e poder, ampliando as formas de interpretação dos fenômenos sociais. Ressalto aqui, a importância de engajarmos para criticar e dissolver sistemas de opressão, seja eles teológicos, políticos, judiciários, econômicos, epistemológicos e socioculturais, que assegurados pelo poder, influenciam e perpetuam direcionamentos à violência e a desumanização. Fazemos assim da psicologia um instrumento com potencial político, utilizando nossa abstração como um recurso crítico das diversas formas de violência. Enquanto os direitos humanos básicos para a existência não são garantidos a todas as pessoas, é necessário combater todas as formas de violência que desnaturam os humanos, retirando o direito de ser e experienciar o tornar-se, profanando a existência humana. Como a música de Bob Marley interpretada por Sinéad O’Connor afirma, em todo lugar há guerra, e devemos lutar confiantes na vitória contra os inimigos reais.



Referências:

ROLANDOROCHA. Sinead O'Connor- War ( legendas em Português). [Vídeo]. YouTube, 30/11/2018. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ZINQegZfu6A Acesso em: 01/05/2024

MARTINI, R. DA S.. A fenomenologia e a epochê. Trans/Form/Ação, v. 21-22, n. 1, p. 43–51, 1999.

FREUD, S. (1917/1944). Conferências Introdutórias sobre Psicanálise. In: FREUD, S. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. v. 16. Rio de Janeiro: Imago, 1990, p. 295.

MBEMBE, Achille. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. Tradução de Renata Santini. São Paulo: N-1 edições, 2018.



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